Ontem
Corre o ano de 2000. Estamos perante uma solarenga tarde de Maio. São duas da tarde e uma inquietude percorre o meu ser. Logo mais o Sporting joga para o título. O primeiro desde que sou nascido. Termino o almoço num alegre convívio do clube da terra. Ao microfone o treinador do clube, alegre pelo seu orgulho Sportinguista e por um jantar bem regado diz: ‘A festa só acaba de manhã! Só saímos daqui quando o Sporting já for campeão!’. Sonho… Olho para o campo de futebol, um modesto pelado, onde alguns putos já se recriam com a bola. Imagino como será mais logo com os meus heróis. Como serão as defesas do Schmeichel? Será que o Acosta vai molhar a sopa outra vez? Não fico indiferente e vou jogar também. Imagino que sou cada um dos jogadores do meu Sporting. Engraçado dizer o ‘meu Sporting’. Ainda há poucos meses não ligava a futebol… Apenas quando via os jogos do Benfica com o meu pai. Mas não me cativava! Até ter visto uma equipa diferente… O grande rival do clube do meu pai tinha outra atitude! Estavam desgastados por muitos anos de escassas conquistas mas não perdiam a superioridade moral. Não alinhavam em polémicas. No Sporting era apenas futebol bem jogado! E este ano era o ano do Leão. Apaixonei-me…
Começa a escurecer vagamente e só largo a bola quando o meu pai, benfiquista como já referi, me chama: ‘Jorge, o Sporting está a começar, vem ver!’. Incrível como esta caminhada épica entusiasma até adeptos do arqui-rival. Sujo, a transpirar por todos os poros mas sem ponta de cansaço aí vou eu! Pego numa garrafa de sumo e bebo quase tudo de um trago. Começa a bola a girar e o país pára… O Porto tem hipóteses de nos roubar o título desde que ganhem e nós não. O jogo não está nada fácil mas de Barcelos chega uma boa notícia! O Porto está a perder! Começa a segunda parte e golo do Sporting! Míssil teleguiado de André Cruz. Os golos entraram em catadupa e o Porto perde mesmo em Barcelos mas isso já não interessava para as contas! O título já não fugia! No céu estouram foguetes, garrafas de champanhe são ruidosamente abertas. Buzinas de carros percorrem as ruas até da mais modesta aldeia. Ninguém fica indiferente a tamanha festa! O país está pintado de verde e branco!
Dois anos depois, em finais de Abril, numa tarde cinzenta, vou eu no carro com os meus pais a caminho de casa. Não me lembro de onde venho. Sei para onde vou e como me sinto. Vou para casa com uma azia descomunal! No dia anterior tinha tudo pronto para festejar mais um título. Cachecol, boné na cabeça, televisão sintonizada e festa combinada no final do jogo com uma data de Sportinguistas. Não ganhámos ao Setúbal. Nem dormi nessa noite… Hoje o título é possível mas altamente improvável. O segundo classificado, o sensacional Boavista de Pacheco, campeão no ano anterior, visita a Luz. Para o Sporting ser campeão o Boavista tem de perder. Por essa altura o Benfica vencer o Boavista era quase impossível, mesmo em casa… Na rádio ouço Jorge Perestrelo a ‘cantar’ o golo do Boavista. Ainda não é hoje, penso eu… Aquele Sanchez teima em fazer do Boavista uma equipa respeitável e aquele Benfica nunca dará a volta… Passamos por um arraial onde estão à venda cachecóis que dizem ‘Sporting Campeão 2001/2002’. Mandei o meu pai parar! Lá dei dez das novas moedas à senhora e levei um para casa. O Benfica marcou duas vezes e, sem esperar, aí estou eu novamente a festejar um título. Para o ano com Jardel e João Pinto na Liga dos Campeões só podemos brilhar! Com Quaresma e Viana a juntar a um miúdo de 17 anos que teima em treinar com os ‘graúdos’ o futuro é verde! Não há volta a dar! O país está nova e literalmente pintado de verde e banco.
Hoje
Jardel evaporou-se. João Pinto teve uma paragem cerebral que lhe custou meia-época. Viana foi vendido. Quaresma não rendeu metade da época anterior. A equipa lutou para evitar males maiores e acabou em terceiro na época seguinte. O futuro não foi tão verde como previa. O pior é que, depois disso, o máximo que conseguimos foram segundos lugares. Dirigentes orgulharam-se dessas classificações e tornaram o Sporting pequenino. Longa está a tornar-se a travessia do deserto e há quem nos desrespeite e não nos considere um grande. Um outro Sporting, que só partilha mesmo parte do nome connosco uma vez que não têm títulos e têm menos de um terço dos nossos associados, alega ser o nosso verdadeiro rival. Porto e Benfica alegam superioridade moral sobre nós. Não a têm… O que é certo é que, desde há algum tempo que ficamos a ver outros lutarem por conquistas do lado de fora.
No entanto o clube mudou. A mudança não foi pacífica mas, pelo menos desportivamente, o clube está diferente. Faz-me lembrar o Sporting que me fez gostar de futebol. Começou mal este campeonato mas temos feito a nossa obrigação e vencido jogos em que, apesar das dificuldades, a nossa superioridade é evidente. Temos vencido adversidades terríveis de forma dramática. Ninguém dá nada por esta equipa, ainda a vêm como outsider, bajulam os plantéis de Porto e Benfica, mas em campo tal diferença não se nota. Nesse aspecto temos algo do Sporting de 2000. Há mais união e toda a gente espera, mesmo os mais contestatários, que este seja um ponto de viragem no clube. Ninguém exige títulos ao Sporting num ano em que muito mudou. No entanto a esperança é verde. Isso ninguém pode mudar.
Amanhã
Acordo já depois da hora de almoço num dia bem iluminado de Maio. A noite foi longa e dói-me a cabeça. Bebi demais… Levanto-me e visto-me. Hoje é um dia especial. As vestes pretas que costumo vestir em ocasiões importantes da vida académica hoje estão diferentes. Têm motivos de cinza e vermelho-tijolo. Tenho também uma bengala e uma cartola. Estou a chegar ao fim da minha vida de estudante. Serei engenheiro em breve e hoje é o meu último cortejo da Queima das Fitas. O meu Sporting logo também tem hipóteses de chegar ao título, apesar de partir detrás de um rival (não interessa qual) por dois pontos. A festa do rival está preparada. O Sporting não tem hipóteses. Joga com o Braga em casa e o adversário dos rivais é muito mais acessível. Nunca o rival perderá o jogo que lhe dará o título. No entanto há esperança em mim. Seria lindo neste dia o meu Sporting dar-me a alegria de ser campeão dez, repito dez, anos depois… No bolso da batina vai o velhinho cachecol de 2002, comprado no arraial, como talismã. As recordações do grande Sporting da minha infância/adolescência vão comigo. Hoje é dia para recordar todo o meu percurso até aqui e o meu grande amor é disso uma parte indissociável. Como algo à pressa e aí vou eu a caminho dos Arcos. Não vejo os jogos porque não quero perder aquela que será uma das maiores recordações da minha vida. No entanto uma pergunta é repetida ao expoente da loucura: ‘Como está o Sporting?’.
Ao intervalo o Sporting perde por 1-0. Já o rival ganha. O título é cada vez mais uma miragem. Esqueço o futebol e concentro-me apenas na cerveja. Para o ano há mais e os jogadores do meu clube já foram uns heróis ao fazerem mais com menos.
Chego ao Largo da Portagem. Ouço um grande grito. É golo do Sporting! No outro jogo o rival também está empatado. Tu queres ver que?… Entro no café. Encontro ao canto uma cadeira onde me sento. Sinto que tenho algo no bolso da batina. É o velho cachecol. Coloco-o ao pescoço. Faltam cinco minutos para terminarem os jogos e estes resultados não servem ao Sporting. No entanto o rival sofre outro golo mesmo em cima do minuto 90. O mundo para de girar mas os corações Sportinguistas batem cada vez mais forte e o tempo voa. Último minuto de compensação. Rinaudo recupera a bola e parte desenfreadamente para o ataque. Toda a equipa sobe só fica Patrício. Bola em Capel que galga meio-campo, tabela com Schaars e entra na área, Wolfswinkel está solto, tenta colocar-lhe a bola e… É VARRIDO! Penalti! É penalti para o Sporting! O estádio exulta! Wolfswinkel pega na bola e coloca na marca. Domingos grita como se fossem necessárias instruções para bater um penalti. O meu cachecol já me tapa por completo o rosto. Não quero ver! O árbitro apita. O Holandês corre para a bola. Uma eternidade para lá chegar… REMATA…
Falta um final a esta história. Por mim voltávamos a tingir Portugal de Verde e Branco… E vocês, o que acham?
© Sigurd 2011