Um artigo interessante na revista do Público sobre o assunto:
«Os anos 2000 serão mais recordados pela tecnologia que pela música. Não que a música seja negligenciável. Será até das décadas mais ricas da pop. Mas paradoxalmente, longe de ser das mais marcantes. Não por acaso, só nos encontramos todos em volta dos Beatles ou Michael Jackson, ícones de um passado que já não existe.
Sintonizar o rádio às escondidas, madrugada dentro, era abrir uma porta para um outro mundo, longe da pequena cidade em nenhures que a janela revelava. Algo longínquo, misterioso, soprado no éter desde mil e muitos quilómetros de distância. Ele que ouvia o rádio não estava sozinho. Mas quem seriam os outros: comunidade agrupada em volta da rádio madrugada dentro? Nunca o saberia. Na melhor das hipóteses, iria descobri-los anos depois, quando uma conversa conduzisse a uma canção, essa canção trouxesse a recordação do quarto e da caixa de madeira e circuitos eléctricos produzindo som e, com ela, a revelação de que, há muito, aquele momento havia sido partilhado sem o saberem, noite após noite.
Se a descrição parece arcaica, é porque o é. Extrapolámo-la das recordações de Bob Dylan de como descobriu a folk na rural Duluth, a cidade do Minnesota onde nasceu. Evoca imagens a preto e branco, irreais por parecerem hoje tão improváveis - houve mesmo um tempo em que a rádio era a única porta aberta para o mundo?
Contudo, não precisamos de recuar tanto. Tão perto quanto os anos 80, ainda era ela que servia de farol agregador e formador de comunidades de melómanos - basta recordar, cá dentro, o trabalho ímpar de António Sérgio, o mais influente radialista português.
Claro que entre os anos 50 de Dylan e os 80 do “Som da Frente”, assistiu-se ao nascimento da era do single e, depois, do LP. Claro que apareceram depois as cassetes e, com elas, gravando, desgravando e regravando, a música passou a circular de forma livre e personalizada. Depois, nasceu o CD e, anos 90 dentro, o CD gravável - em termos de impacto, um pequeno e pouco significativo upgrade da cassete. Porém, estes saltos tecnológicos não alteraram radicalmente a forma como ouvíamos música. Não alteraram radicalmente a forma como nos relacionávamos com os músicos: a cultura pop juvenil, tal como estabelecida com o menear de ancas de Elvis Presley no Ed Sullivan Show, em 1956, manteve, mais hippie, menos rockabilly, mais punk, menos metaleiro, os mesmos gestos, as mesmas normas de idolatria, os mesmos processos de mitificação.
Em 1995, com o CD estabelecido, com a indústria a lucrar como nunca antes - às novas edições juntavam-se as reedições, de custo próximo do zero, de álbuns prévios ao novo formato -, não seria descabido que alguém anunciasse com pompa e circunstância o “fim da história” do fenómeno pop, tal como entendido por Fukuyama. Instalados no final da primeira década do século XXI, não demoramos a encontrar expressão adequada a tal raciocínio: balelas. No que à música diz respeito, esta foi a década em que tudo recomeçou, para nada ser como dantes.
A imparável democratização
E não é por acaso que passámos os parágrafos anteriores a falar da tecnologia a ela associada. Nos anos 2000, Google, MP3, iPod ou MySpace: foram eles que mudaram tudo. Foi a agressiva e imparável democratização da experiência musical, da audição de música à criação de música, que nos trouxe até aqui: a um ponto em que já não nos reconhecemos naquilo que éramos quando, na passagem de ano de 1999 para 2000, festejámos a inexistência do apocalíptico “bug” do milénio.
Recentemente Alexei Petridis, crítico do “Guardian”, propôs um exercício. Olhando para a música que se ouvia no início de uma década, e aquilo em que se transformara no final, teríamos uma panorâmica da sua dinâmica transformadora. Nos anos 1960, alega Petridis, passou-se do “skiffle” para Jimi Hendrix. Nos 1970, de Jethro Tull para Gary Numan - e qualquer um que se visse teletransportado de um extremo da década para o outro, perguntar-se-ia que raio se tinha passado entretanto. Nos anos 2000, porém, o choque não seria tremendo. Praticamente nada de 2009 seria irreconhecível em 2000 - esta foi a década em que toda a história pop se reencontrou, se misturou e remisturou nas mesmas ou em novas combinações, em que todos os tempos co-existiram num imenso caleidoscópio de sons.
Em retrospectiva, esta década será mais recordada pelas transformações tecnológicas que pela música ela mesma. Não porque a música seja negligenciável. Pelo contrário, com a democratização dos meios de produção (qualquer um pode gravar um disco em casa e disponibilizá-lo a partir de casa), com as mil possibilidades criativas geradas pela facilidade de acesso a toda a história que a antecedeu (“o câmbio actual do conhecimento de álbuns obscuros está abruptamente tão desvalorizado quanto o dólar zimbabueano”, lia-se na última edição da Word), esta será uma das décadas mais ricas da pop - mas paradoxalmente, longe de ser das mais marcantes. Porquê? Porque o cenário está sobrepovoado e o consenso é inexistente (nunca se anunciaram tantos “álbuns do ano” ou “melhores discos da década” como hoje, nunca se desconfiou tanto dos “álbuns do ano” ou “melhores discos da década” anunciados). Porque o iPod e os MP3 tornaram a música omnipresente no quotidiano, mas não a tornaram mais importante: “O tempo voa quando estou a ouvir música. É assim: ‘hmm, o que é que estava a ouvir há dois segundos?’ Mas como que nos habituamos a isso”, descrevia um nova-iorquino de 18 anos em artigo publicado no site da NPR. E, finalmente, porque a net e as suas redes sociais, a intensa actividade divulgadora dos blogues e a capacidade de agregar gente em seu redor, geram pequenas comunidades de consensos, tornando profético algo que Momus escreveu no distante ano de 1991: “no futuro, todos serão famosos para 15 pessoas”.
A noção de exclusividade, tão querida da ética indie num passado que já não existe, passou dos álbuns obscuros, propriedade de uns poucos resistentes à tenebrosa dominação do “mainstream”, para aquele “I had everything before everyone else” que os LCD Soundsystem cantaram em “Losing My Edge”, a canção que melhor expressou a decisiva ruptura com o passado vivida nos anos 2000.
Numa década iniciada com a aclamação geral a “Is This It?” dos Strokes e que teve como último álbum consensual, enquanto marca geracional, “Funeral”, dos Arcade Fire; numa década em que se assistiu à ascensão de M.I.A. como alguém que transportou para o centro da pop expressões musicais até então marginais e em que Timbaland e os Neptunes transformaram, perante todos, produções arrojadíssimas em matéria “mainstream”; neste década em que as grelhas de gosto se pulverizaram numa amálgama sem hierarquia (os Velvet Underground podem ser tão relevantes quanto bandas sonoras televisivas dos anos 1980), nesta década a que, de Amy Winehouse a Jay-Z, não faltaram personagens, ninguém se destaca, ninguém pode ser entronizado como seu máximo representante. Poder-se-ia argumentar, por exemplo, que os Animal Collective, tendo em conta as marcas da sua música que reconhecemos hoje em tantas bandas, são o grupo mais influente deste tempo. Mas seria igualmente válido afirmar que as bandas mais influentes da década não nasceram nela: não são os Cure e os Joy Division aquilo que ouvimos nesse saturante revival pós-punk/80s que, dos She Wants Revenge aos Editors, nos acompanha desde 2001?
Ao contrário do que muitos esperavam, a net não trouxe verdadeira democratização comunitária, antes uma democracia individualista. Cada um define o seu percurso na rede, recolhendo informação, saltando de meta ligação em meta ligação. Ninguém quer líderes ou pregadores: John Lennons seria hoje em paternalista com a mania do activismo, Joe Strummer, muito genericamente, um chato. Ainda assim, continuamos fascinados com figuras dessa dimensão icónica.
Durante os anos 2000, foram os Rolling Stones, não os Coldplay, a banda que mais lucrou em digressão. Os Beatles, com a edição da sua discografia remasterizada, escalaram os topes mundiais e voltaram a ser ouvidos em massa nas rádios e nos iPods. E Michael Jackson, com a sua morte precoce, foi chorado e reavaliado e reconquistou o trono de Rei da Pop.
Todos eles nos fascinam por representarem um passado e uma possibilidade pop que desapareceu e que só reconhecemos por contingência etária. Estamos num novo mundo e, para o bem e para o mal, nada será como dantes.»
fonte: http://ipsilon.publico.pt/musica/texto.aspx?id=248431