Reescrever a historia não é nada de novo. Sempre que se assiste a uma mudança de regime, de liderança, de paradigma existe uma tendência para limar aspectos do passado - mais ou menos distantes. Após a conturbada saída do anterior conselho diretivo do Sporting, alguns desses aspectos estão agora a ser habilmente modificados para servir a narrativa de quem ocupa o poder no Sporting.
Um desses aspectos tem a ver com o desvanecer, na memória Sportinguista, do papel que certos elementos tiveram na vida recente do Sporting. A ideia, que se tem vindo a disseminar com cada vez maior persistência, tem a ver com a atribuição de responsabilidades a apenas uma pessoa: o anterior presidente. Se do ponto de vista institucional o líder é sempre o responsável supremo de tudo o que se passa no clube também não deixa de ser verdade que tal princípio não desresponsabiliza aqueles que o acompanharam na presidência e na gestão do futebol.
Neste contexto, duas figuras fundamentais estão constantemente a passar por entre os pingos da chuva:
- Jorge Jesus:
Quem frequenta as redes sociais e escuta os comentadeiros da nossa praça fica com a sensação de que o anterior presidente não apenas geria o futebol do clube como também treinava e, possivelmente, jogou algumas das partidas fundamentais de épocas recentes. O futebol falhou? Culpa do Bruno. As contratações falharam? Culpa do Bruno. A equipa jogava mal? Culpa do Bruno.
Curioso: num passado recente, o futebol do Sporting tinha dois pilares indiscutíveis: o presidente e o todo poderoso Jorge Jesus. Aliás , eram frequentes as críticas ao presidente por ter dado demasiado poder ao “mago” da Reboleira. A estrutura do futebol do Sporting passou a ser JJ. Estranhamente (ou talvez não) muitas dessas vozes críticas de então ignoram, no momento actual, a passagem de Jesus pelo Sporting. Os supostos “barretes” de jogadores que contratámos num passado recente são todos da única e exclusiva responsabilidade do anterior presidente. Mais curioso ainda - comportamentos bipolares são frequentes nesta altura - algumas dessas mesmas “vozes críticas” gostariam de ter JJ de volta ao Sporting.
A verdade é que Jorge Jesus foi um erro monumental do anterior presidente. Não por o ter contratado (golpe de mestre, na altura) mas sim por não o ter despedido quando era evidente que o “académico” não era capaz de levar o clube ao patamar competitivo desejado (mesmo tendo “ganho” o campeonato na primeira época). Nos dias de hoje, JJ expurgou todos os seus pecados após o ataque de Alcochete e aparece de manto imaculado como vítima de um presidente truculento. JJ não teve culpa de nada, não mandava em nada, não tinha responsabilidades algumas nem cometeu qualquer erro. Foi tudo o Bruno.
- Carlos Vieira:
Ate à bem pouco tempo Carlos Vieira era uma figura estimadíssima no universo Sportinguista. Um “low-profile” extremamente competente, reconhecido como um dos obreiros fundamentais da recuperação financeira do Sporting. Era de tal forma admirado que foi visto, em diversos sectores, como o sucessor ideal de Bruno de Carvalho, sobretudo para aqueles que conviviam mal com o estilo de comunicação do anterior presidente.
Nos dias de hoje, mais de meio ano depois da sua saída do clube, o seu trabalho é vilipendiado constantemente na praça publica, nomeadamente por elementos da actual direcção ou da ex-comissão de gestão. Por outro lado, o nome dele é invariavelmente omitido. As contas do Bruno, o Bruno deixou o clube na miséria, a gestão financeira do Bruno era “amadora” entre outros adjectivos pouco lisonjeiros. A reação de Carlos Vieira até agora tem sido tímida, como é seu apanágio, mas, para quem tem vindo a assistir ao arrastar pela lama da sua reputação profissional, sabe a pouco. Talvez porque, comfortavelmente, o suspeito do costume esteja a levar com o ônus de todas as acusações.
Também interessante é que o grupo de fans do Carlos Vieira tenha, subitamente, desaparecido do mapa. Das duas uma: ou estavam todos errados na opinião que tinham do homem (e nesse caso compreende-se que estejam embaraçados) ou então continuam a achar que ele fez um excelente trabalho e, nesse caso, deviam defendê-lo em praça pública. De qualquer forma, este cenário em que um homem só (BdC) carrega todos os supostos pecados de um corpo directivo parece ser conveniente para todos, mesmo para aqueles que o acompanharam na gestão do clube e, especificamente, na área financeira.
Em todo o caso, muito dos comportamentos da actual direcção parecem fundamentar-se num ajustar de contas com o passado. Para esse efeito, concentram todas as atenções no “belzebu” personificado na figura do anterior presidente. Ao fazê-lo estão também a reescrever a historia recente do clube e a transformar em “fantasmas invisíveis” certos intervenientes de relevo, tornando-os em figuras inimputáveis.
O clube atravessa uma crise de identidade profunda. O futuro parece ser cada vez mais incerto. Aqueles com mais experiência de vida dirão que não é possível construir um futuro melhor quando se tem um passado mal resolvido. Esse passado parece ser o “elefante na sala” que, em vez de ser frontalmente esclarecido, se está a transformar na âncora a que todos se agarram.
Só quando os méritos e as responsabilidades de todos forem devidamente reconhecidas e atribuídas poderemos dar um primeiro passo em frente. Um pequeno passo… mas um decisivo para o que resta da vida do Sporting Clube de Portugal.