A rivalidade com o Benfica está na matriz do Sporting. O Nélson Rodrigues – fanático do Fluminense – disse um dia o Fla-Flu surgiu quarenta minutos antes do nada. O mesmo se aplica o Sporting-Benfica. É o grande clássico do futebol português. Opõe pai contra filho, irmão contra irmão e amigo contra amigo. Tem um apelo transversal que mais nenhum jogo em Portugal tem – por muito que isto custe aos nossos rivais andrades. É a vitória mais doce e a derrota mais amarga.
Reconhecer a importância desta rivalidade não reduz em nada o Sporting. Pelo contrário, só mostra a complexidade e riqueza do clube. Os clubes são instituições centenárias e a sua identidade, construída ao longo de décadas, tem múltiplas camadas. O anti-benfiquismo é só mais uma. Vivida no meio das outras, não tem nada de errado. Mas quando se torna o centro de tudo - o que eu designo por anti-benfiquismo primário - é destrutiva.
Eu perfilhei o anti-benfiquismo primário durante quase três décadas com entusiasmo. Não sem razão. Boa parte das minhas memórias de infância, coincidem com um dos períodos mais negros da história do clube – imaginem esta época de 2009/10 mas multiplicada por três: 87/88, 88/89 e 89/90. Ao mesmo tempo que o Benfica ia a duas finais da Taça dos Campeões Europeus, nós discutíamos a Taça de Honra da AF Lisboa. Quando eles tinham o Valdo, nós tínhamos o Ali Hassan. Quando eles tinham o Magnusson, nós tínhamos o Eskilsson. E, na escola, as hordas vermelhas faziam questão de o lembrar todos dias. Ser do Sporting era então mais do que apoiar um clube: era um exercício de resistência - psicológica e, às vezes, mesmo física.
Sporting vs. Benfica tornou-se um molde de como eu via a ficção e até a História. Lia o Senhor dos Anéis e adivinhava logo qual era o clube do Sauron. Lia sobre a Guerra Civil de Espanha e achava que “No Pasarán!” podia ser o nosso lema. Lia um livro sobre a batalha de Inglaterra e via bravos pilotos de Spitfires com cachecóis verde-e-brancos a manterem à distância o dobro de Messerschmitts com águias pintadas na fuselagem. Churchill tinha razão: se o Benfica jogasse com a selecção do Inferno, o Diabo mereceria pelo menos uma palavra de apoio no Parlamento.
Javier Marías diz que o futebol é um regresso semanal à infância. Isso talvez ajude a perceber porque me mantive esta visão infantil já por este século a dentro. Ganhávamos pouco; mas isso pouco importava porque o Benfica ainda ganhava menos.
Então vieram as cinco últimas épocas. E comecei a sentir que qualquer coisa estava errada – muito errada. Jogávamos um futebol horrível, contratávamos quintas escolhas, definhávamos nas modalidades onde outrora dominávamos. No entanto, o discurso dos dirigentes tinha qualquer coisa de “duplipensar” orwelliano. A incapacidade de gerar receitas e desinvestimento testemunhavam uma gestão de excelência. O empobrecimento do clube era apresentado como racionalização. O almejar e exigir títulos como demagogia. Um treinador perdedor como um vencedor no longo prazo. A incompetência no mercado como uma aposta nos jovens Academia. E, acima de tudo, as dificuldades de quem estava pior que nós como prova de que estávamos no bom caminho: “Não estamos à frente do Benfica? Que queres mais?”
Abalado nos alicerces, o meu anti-benfiquismo primário desabou finalmente numa noite de Fevereiro de 2009. Jogo contra o Rio Ave, o primeiro depois do desastre de Munique. Fui ao estádio na firme disposição de mostrar o que achava do facto de Bento, Franco e Telles não se terem demitido na hora. Então, pelo rádio, surge a notícia de que o Benfica perdeu com o Guimarães. Grande ovação! Pela primeira vez, senti-me completamente estranho a uma manifestação de anti-benfiquismo. O clube tinha sido ridicularizado perante milhões de telespectadores; estávamos a mais de dez pontos do primeiro lugar a meio do campeonato; não ganhávamos um jogo fora para o campeonato desde Outubro. E festeja-se?! Por causa dos tristes do Benfica?!
Experimentei então olhar a realidade sem os óculos do anti-benfiquismo primário. Se fizerem o mesmo agora, o que vão ver não é bonito:
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Passaram oito anos desde o nosso último título. Os últimos quatro em segundo lugar atrás do Porto. Será que não nos estamos a enganar sobre o nosso principal adversário neste momento?
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Pensem nos últimos 15 campeonatos. Os lampiões, esse inimigo pérfido e temível, afinal ganharam tantos campeonatos como nós: 2. O Porto, esse, ganhou 12. Será que não nos estamos a enganar sobre o nosso principal adversário neste momento?
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Pensem no Apito Dourado. Ficou provado que houve um clube que ganhou o campeonato de 2003/04 subornando árbitros – sendo o seu principal adversário nesse campeonato o Sporting Clube de Portugal. Que clube era esse? Será que não nos estamos a enganar sobre o nosso principal adversário neste momento?
Uma coisa é gostar de dar alfinetadas no Benfica – algo de saudável. Outra é assumir as balelas do Porto, por mais absurdas que elas sejam, com um ardor de fazer inveja a qualquer Super Dragão. É o Vandinho que é um mártir (apesar de as imagens que o mostram aos pontapés ao treinador adjunto do Benfica). São cabalas contra o Braga para os impedir de inscrever substitutos para o mesmo Vandinho (apesar de, à época do castigo, já terem esgotado as vagas de Inverno). É o Hulk que é provocado por um steward (apesar de nenhuma imagem o mostrar). É o Ruben Micael que é vítima do túnel da Luz (apesar de só se ter lembrado disso quando chegou ao Porto e de, quando a Liga o chamou para investigar, ter ficado calado a conselho dos advogados do Porto). É o Benfica que controla Liga (apesar de ter sido o único “grande” que não apoiou a lista que agora cessa funções). É o Falcão que leva um amarelo para o impedir de jogar com o Benfica (apesar de a única dúvida nesse lance ser se é para amarelo ou vermelho)
Um jogador lamp leva com um isqueiro, pega nele,finge que o vai atirar de volta e deixa-o cair - a Liga é vermelha pois não lhe dá um castigo igual ao Hulk! Entretanto o Braga mantém-se na corrida do título graças a uma arbitragem vergonhosa contra o Guimarães e um golo milhas fora-de-jogo contra o Paços, mas isso não merece um comentário. O CJ da FPF iliba um jogador de uma suspensão justa com uma decisão hilariante que equipara um steward a um espectador – mas está é “descoberta a careca lampiã do Ricardo Costa!”. Desde que se arranje ruído – e se o Porto é especialista nisso! - e se repita o mantra: “este campeonato é roubado pelo Benfica”, tudo estará bem.
Desculpem-me se não alinho nisto. Desculpem-me se me entristece ver adeptos do Sporting a festejarem efusivamente golos do nosso principal adversário, quando caminhávamos para a 8ª derrota e para o 17º jogo sem ganhar da temporada. Desculpem-me se me entristece ver, na homenagem a um símbolo do Sporting, incentivos a um treinador que um dia disse que em circunstância alguma vestiria a camisola do Sporting. E desculpem-me se acho que este anti-benfiquismo primário e a sua manipulação por Direcções incompetentes tem tido um papel importante no adormecimento do clube.
E, antes de me atirarem as pedras, não estou a tentar a dizer a ninguém o que deve sentir. Estou a relatar o que eu sinto. Em mim, o anti-benfiquismo primário desvaneceu-se e não me peçam para o sentir de novo tão cedo.
Infelizmente, o Benfica vai ser campeão esta época. Vai custar-me muito, claro. Mas não mais do que se tivesse sido o Porto a ganhar. Não mais do que qualquer ano em que o Sporting não está no seu lugar devido: o primeiro. E não mais do que quando penso no tempo que desperdiçámos, enquanto celebrávamos a comédia da Luz.