Vamos colocar aqui a entrevista completa:
Manuel Fernandes
Frontal, com Alvalade sempre no horizonte, Manuel Fernandes, actual técnico do ASA de Luanda, “anuncia” para breve o regresso à casa que lhe enche o coração… para desempenhar funções na estrutura do futebol
“Vou deixar de treinar e voltar ao Sporting!”
FILIPE ALEXANDRE DIAS
Numa altura em que tanto se fala em símbolos vivos, na falta deles ou acerca de quem realmente o é, se olharmos para as últimas três décadas da centenária história do emblema de Alvalade, é com facilidade que se chega ao binómio Sporting-Manuel Fernandes. Em entrevista exclusiva a O JOGO a partir de Angola - onde presentemente treina o ASA de Luanda -, o homem que tantas vezes pôs os adeptos leoninos a pularem de alegria e que, em campo, vibrava como o mais fervoroso dos adeptos nas bancadas de cada vez que sacudia as redes adversárias, promete que as saudades e a memória da forma triste como por três vezes saiu do clube pertencerão ao passado dentro de pouco tempo, eventualmente já no próximo defeso. “Manel” revela estar prestes a terminar a carreira de treinador para dar um novo rumo à vida, mas na sua casa de sempre, à qual se sente capaz de dar muito - e ainda mais agora, possivelmente na estrutura de comando, orientação e gestão do futebol profissional dos leões. Logo ele, que aqui diz ver “o mundo às riscas verdes e brancas”. Uma perspectiva que cresceu com o rapaz de Sarilhos Pequenos que se escondia na cama para ouvir os relatos do Sporting, mas cedo viu partir a mãe, que lhe deixou a premonição de que um dia viria a ser alguém no clube de toda a família. Foi e, pelas palavras do próprio, voltará a ser muito mais do que isso, dentro de muito pouco tempo…
É impossível falar consigo sem começar pelo óbvio: regressar ao seu clube do coração continua a ser um objectivo?…
Voltarei ao Sporting mais tarde ou mais cedo. Não é uma obsessão, mas sim uma grande ambição, que nunca escondi. Tenho a certeza de que ainda tenho muito para dar ao clube. Posso vir a trabalhar em conjunto com esta Direcção ou até com uma outra, com o devido respeito por quem neste momento lá está, assume responsabilidades e dá o seu melhor.
Fala de forma apaixonada. Acredita que esse desejo será realidade em breve?
Claro que falo com paixão. Ninguém adora mais o Sporting do que eu! Pode haver quem goste tanto, mas mais é que não! Tenho mantido alguns contactos no sentido de voltar, já conversei com algumas pessoas, cujos nomes obviamente não citarei, e creio que se trata apenas de uma questão de tempo. Tenho mais um ano de contrato com o ASA, e o Girabola [n.d.r.: campeonato angolano] só termina em Novembro, mas veremos como as coisas evoluem. Tudo na sua devida altura.
Admite assumir outro tipo de competências que não as de treinador, é isso?
Planeio deixar de ser treinador e voltar para o meu clube com outras funções. Além da experiência acumulada como jogador e treinador, esta aventura em Angola também me está a ensinar muito no que ao lançamento de jovens diz respeito, e aqui, naturalmente, as condições são outras. No entanto, está a ser uma grande experiência.
Saiu de Alvalade pela porta pequena como jogador, depois como técnico-adjunto e, mais tarde, quando era treinador principal… São muitas feridas. O Sporting está em dívida para consigo?
Nunca! Isso nem sequer se coloca. Eu é que devo tudo ao Sporting. Posso ter sido alvo de algumas decisões injustas no passado, mas foram atitudes que partiram de pessoas, não da instituição. O meu amor pelo Sporting é tal que jamais poderia confundir as coisas. Costumo dizer, na brincadeira, que às vezes parece que vejo o mundo às riscas verdes e brancas. Sou um apaixonado pelo Sporting desde que me conheço, muito com o incentivo da minha mãe, que infelizmente me deixou quando eu só tinha dez anos. Ganhei títulos, vivi muitas alegrias e algumas tristezas, mas nunca me esquecerei de que o meu melhor momento foi quando vesti pela primeira vez aquela camisola. O meu objectivo sempre foi servir o clube, sem magoar ninguém. Continua a sê-lo, e creio que ninguém me pode levar isso a mal.
“Equipa não ficará de mãos a abanar”
Manuel Fernandes não tem dúvidas quando o tema de conversa é a instabilidade que os leões viveram a nível interno na presente época: é importante não cometer erros do passado…
À distância, como acompanhou a turbulência que agitou a estrutura directiva e técnica leonina nesta temporada?
Os sócios elegeram esta Direcção e devem dar-lhe condições para trabalhar com serenidade até final do mandato. Passei por muitos momentos delicados em Alvalade, e, quando eram tomadas decisões a quente, o clube nada beneficiava. As que se tomaram agora foram pensadas, e fiquei contente por não se ter cedido à pressão externa. Um mau exemplo foi dispensarem a equipa técnica onde estava Bobby Robson, eu próprio e José Mourinho, após a eliminação injusta em Salzburgo. Íamos em primeiro no Campeonato, e deu no que deu.
Paulo Bento chegou a exibir sinais de saturação. Temeu que a época se comprometesse com chicotadas psicológicas ou crises directivas?
Conheço bem o Paulo. É sério e pragmático. Acabou por haver bom senso. Porém, a Liga está perdida, mas o Sporting não vai acabar a época de mãos a abanar. Disputa três provas. Uma é a final da Taça da Liga. Ganhá-la seria histórico, pois é a primeira edição. Tenho esperanças na Taça UEFA, mas ainda é cedo.
“Gewer tem muita qualidade”
A última ligação que Manuel Fernandes teve com o emblema leonino esteve relacionada com John Gewer, médio brasileiro de 19 anos actualmente à experiência na Academia leonina. A transição do jovem teve o dedo do “Manel”, que explica: “É um miúdo com muita qualidade, mas isso competirá a quem de direito analisar. Ele esteve a treinar-se comigo aqui no ASA e é um médio-ofensivo com óptimos recursos. Os agentes dele queriam colocá-lo noutro mercado, e sugeri que tentassem o Sporting.” Caso seja possível, o técnico pensa ainda recuperar o sul-americano: “Ele já não pode ser inscrito, e quem sabe se ainda não o poderei ter de volta?”
Corpo técnico de sonho desfeito em Salzburgo
De volta a casa depois do desaguisado com a Direcção presidida por Amado de Freitas, Manuel Fernandes reentrou como adjunto de Bobby Robson (1992/93). Para colaborar com o prestigiado treinador inglês, levou consigo um jovem professor de Educação Física com quem trabalhara no Vitória de Setúbal e, posteriormente, no Estrela da Amadora. Chamava-se José Mourinho. Na época seguinte, o Sporting encontrava-se isolado no primeiro lugar da tabela e praticava futebol de eleição, quando foi eliminado com surpresa da Taça UEFA pelo Casino de Salzburgo, em 7 de Dezembro de 1993. O então presidente Sousa Cintra demitiu com estrondo toda a equipa técnica e contratou Carlos Queiroz, que veria o título fugir para o Benfica. O “Manel” saía de novo…
Sem contrato assinado foi “trocado” por Boloni
Na sequência da segunda saída de Alvalade, Manuel Fernandes prosseguiu a carreira como treinador principal. Orientou Ovarense, Campomaiorense (que conduziu, pela primeira vez, ao escalão principal), Tirsense e Santa Clara. Em Ponta Delgada, obteve estupendos resultados, ao conseguir três promoções em quatro épocas pelos açorianos - que também fez estrear no mais alto patamar nacional.
Decorria a época 2000/01, quando o Sporting campeão em título fazia época sofrível. Face à saída de Augusto Inácio, o clube lançou o chamamento, e Manuel Fernandes não resistiu. Assumiu o cargo em 25 de Janeiro de 2001 e ainda conquistou a Supertaça, batendo o FC Porto, mas… não ficou. Numa prova de lealdade, não quis assinar logo contrato por ano e meio. Sem vínculo oficial e com a SAD a procurar novo técnico, rejeitou ficar noutras funções e tornou a sair.
Inesquecível goleador sem devida recompensa
Manuel José Tavares Fernandes cumpriu o sonho de representar o Sporting no Verão de 1975, transferido da CUF. A missão era “só” substituir Hector Yazalde, o argentino que marcou para sempre a história do futebol português com um recorde de 46 golos no Campeonato numa só época. O jovem de Sarilhos Pequenos assumiu a responsabilidade… durante 12 épocas. O ponta-de-lança marcou 255 golos em 433 jogos, contabilizou 31 internacionalizações (uma ainda pela CUF) e venceu dois Campeonatos, duas Taças de Portugal e uma Supertaça, além de capitanear a equipa durante oito anos. Após a temporada 1986/87 - a tal dos 7-1 ao Benfica, em que marcou quatro golos -, saiu sem glória de Alvalade, magoado com a Direcção, terminando a carreira a contragosto, mas de cabeça erguida, no Vitória de Setúbal.
“Chorava se ficasse fora de um dérbi”
Nome também incontornável do centenário dérbi graças a muitos golos, o ex-avançado Manuel Fernandes deseja vitória leonina no duelo que aí vem e revisita algumas memórias…
Vem aí mais um dérbi, mas sem o encanto de outros tempos. Contará para a luta pelo segundo posto e consequente lugar na Champions. Vai acompanhar o desafio em Luanda?
Claro. Será um jogo importante, até porque está em causa o segundo lugar e o tal acesso à Liga dos Campeões. Será interessante de seguir. O Sporting joga em casa e precisa de vencer e reduzir a distância pontual para o Benfica. Espero que assim seja, obviamente.
Era neste desafio que Manuel Fernandes gostava de aparecer. O dérbi foi o embate que mais gozo lhe deu jogar?
O Sporting-Benfica ou o Benfica-Sporting era o “meu jogo”. Em 12 anos como futebolista do Sporting, não falhei nenhum dos 24 dérbis para o Campeonato. Se tivesse falhado algum, chorava de certeza. Lembro-me da alegria que era ganhá-lo e do desgosto de o perder. Uma pessoa mal podia sair à rua em qualquer dos casos. É um desafio único. Sejamos realistas: é a maior rivalidade desportiva do País. Não há outro duelo assim em Portugal.
Recentemente, e além dos inevitáveis 7-1, surgiu um vídeo no YouTube em que, antes do apito inicial de um dérbi na Luz, Manuel Fernandes cumprimenta Humberto Coelho com desportivismo, felicitando-o pela conquista do Campeonato e presença na final da Taça UEFA, em 1983. Recorda-se?
Lembro-me bem disso. Foi um dérbi na Luz, festa do Benfica campeão em 1982/83. Recordo-me de estar a ser filmado, quando houve a troca de galhardetes entre capitães. Dei os parabéns ao Humberto Coelho pela magnífica época que o Benfica tinha feito, até porque ele era um grande jogador, um adversário de respeito e um amigo. Foi uma demonstração de “fair play” que se impunha, mas, por dentro, estava todo roído [risos]. Gosto mais de ir às minhas festas, não às dos rivais, mas aquele foi um momento que mostra a beleza do Benfica-Sporting e do seu real espírito.
“Ao contrário de Jardel, Liedson é um símbolo”
Liedson é hoje a grande referência do ataque do Sporting, como o Manuel foi em tempos. Ambos costumam fazer o gosto ao pé contra o eterno rival
Ele é um grande jogador que aparece nos grandes momentos. Já é um histórico, um símbolo do clube. Para chegar a esse estatuto, na minha perspectiva de adepto fanático do Sporting, não tanto na de treinador ou ex-jogador, é preciso que um atleta seja talentoso, mas também regular, trabalhador, assíduo no rendimento e na entrega. Os vencedores da Taça das Taças são símbolos, como foram os “Cinco Violinos”. O Yazalde foi um verdadeiro símbolo, o Liedson também. O Jardel já não. E digo-o pela sua conduta extradesportiva, não pelas inegáveis qualidades. O Liedson é um notável, seguramente não daqueles “notáveis” que pouco ou nada fizeram para o merecer. Espero que fique muitos anos.
“Saleiro tem categoria”
É conhecido o seu olho clínico para detectar e trabalhar bons avançados. No entanto, o Sporting não tem conseguido lançar um homem de área…
Sou particularmente exigente e rigoroso com os meus jogadores mais ofensivos, mas isso foi por ter sido avançado. Tenho, no ASA, um miúdo de 19 anos que é fisicamente fortíssimo. Partia uma defesa inteira, mas finalizava mal. Levou-me aos limites da paciência, mas tanto o chateei que, no último jogo da época passada, fez dois golos e deu-nos o quarto lugar. Dos miúdos da Academia, gosto do Saleiro, que está emprestado ao Fátima. Vi os jogos da Taça da Liga contra o Sporting, e ele mostrou categoria. Contudo, categoria é algo que deve ser demonstrado em todos os campos e não apenas nos jogos de maior visibilidade. Talvez o Paulo Bento queira apostar nele para a época que vem.
“Estar no ASA dá-me gozo”
Como define esta aventura no futebol angolano, a sua primeira no estrangeiro?
No ano passado, fizemos um campeonato tranquilo, ficando em quarto lugar no Girabola. Agora temos um plantel jovem e queremos fazer melhor. Fora um elemento que tem 30 anos e um outro com 26, todos os outros têm idades abaixo dos 23. Ver estes miúdos evoluírem é gratificante. Estou cá para os ajudar, de modo a que realizem os seus sonhos. Têm uma qualidade extraordinária e uma imensa vontade de aprender. A muitos, falta apurar alguns aspectos: a técnica de remate, cruzamentos, controlo de bola. Ainda há muito a cultura do futebol de rua, que eu adoro, mas cujos vícios se devem eliminar. Angola está a crescer, viu-se no CAN, e há excelentes exemplos, como o Manucho, e bons jogadores em Portugal, como o Dedé, do Paços, que trazem experiência.
in O Jogo