Bom, vamos lá a ver se nos entendemos:
a) Parece-me óbvio que não deveremos comparar a figura de Jesus Cristo com a de Maomé, isso é óbvio. Jesus é facilmente e quase unanimemente, mesmo entre ateus (inclusive comunistas, anarquistas e toda a espécie de anti-clericalistas cá do meu “lado”), visto como uma figura humanista, de tradição progressista e que de certa forma, inaugura uma tradição moral e ética humanistas entre os povos indo-europeus. Para mim, e esta é a minha interpretação enquanto europeu, democrata agnóstico e próximo das ideias libertárias, Jesus Cristo é uma figura fundamental na construção de uma tradição europeia assente na democracia (que emana da tradição filosófica grega) dando-lhe um cunho de tolerância, humanidade, e demais valores que se costumam rotular de “cristãos” mas que não mais são do que o resultado do pensamento (também cristão, obviamente) europeu progressista e humanista. Maomé é uma figura que surge num contexto totalmente diferente, que assenta a sua “doutrina” (tal como as outras duas religiões abraamicas) no velho testamento, e desconfio, que bebe mais deste do que alguma vez bebeu do Novo Testamento. Se olharmos bem aos ensinamentos de Jesus Cristo, é irónico como corta quase por completo e muitos dos “ensinamentos” do Velho Testamento, aproximando-se muito mais das religiões e tradições filosóficas orientais como o Budismo, o Taoismo e o Confucionismo.
b) e é no seguimento do final do ponto anterior, que introduzo esta ideia que me parece não ir muito em convergência com o que disseste Chev, e que tem a ver com essa diferenciação do Islão e desse rótulo do Islão enquanto religião intolerante e violenta por natureza. E digo isto por uma razão simples: o Islão, que tal como disse, é também uma religião abraamica e tem em comum com o judaismo e o Cristianismo precisamente o Velho Testamento só pode ser rotulado como uma religião intolerante e violenta se assumirmos o mesmo para as outras duas. Afinal de contas o Velho Testamento prega igualmente doutrinas que se podem catalogar de violentas, intolerantes e muito pouco humanistas, e não é por isso que não deixa de fazer parte das escrituras sagradas quer de cristãos quer de judeus. Se o Islão é na sua essência - pegando nos escritos do Alcorão e na prática de vida do seu mais destacado profeta Maomé - violento, intolerante e radical, então teremos sempre de assumir que o Judaísmo e o Cristianismo o são em igual medida na perspectiva que também essas religiões têm na sua base doutrinal quer teórica quer prática, o fomento de tais valores perniciosos (o Velho Testamento é pródigo em “ordens divinas” para matar, conquista, saquear, decapitar, esterminar, etc; não esquecendo a Inquisição, ou a “conversão forçada” do Novo Mundo, ou as conquistas judaicas, etc).
c) Portanto, atendendo aos pontos anteriores, parece-me demasiado simplista - eu diria que fruto de um discurso essencialmente populista e demagógico - querer reduzir tudo a uma questão de diferenciação entre “bons e maus” relativamente ao Islão e as outras religiões. Seja acidentalmente, seja de forma ostensiva, ignora-se o factor evolução e progressismo que tal como nas sociedades, também nas religiões influencia ao longo dos tempos e molda, as interpretações dos textos e valores primitivos. A evolução dos valores humanos, da sua ética e moral, assente no pensamento de filósofos e teólogos ao longo dos tempos, permite fazer progredir a sociedade - abolição da escravatura, direitos das mulheres, bem estar animal, etc - e as religiões não lhe são alheias (sendo influenciadas de fora para dentro, ou podendo influenciar elas próprias a sociedade de dentro para fora). É neste sentido que, à luz daquilo que é hoje a noção de civilidade, de sociedade avançada, com todos os seus valores éticos e morais, as religiões devem acompanhar essa mudança (bidireccionalmente, admito), e portanto adaptar os seus “credos” e doutrinas ao que são hoje as sociedades. As religiões não se cristalizam nos valores primitivos, evoluem. O Islamismo Moderado pode considerar-se como o resultado disso mesmo, tal como o Cristianismo e Judaísmos modernos (porque também os há radicais…) e portanto é, para mim, errado avaliar uma religião contemporânea pelo que esta foi na sua génese.
Não deixa portanto de ser engraçado como aquilo que aqui referi inicialmente como sendo uma corrente do Islão que se denomina como salafista (ou wahabista) se enquadre nesta discussão como sendo precisamente um movimento “purificador” ortodoxo do Islão, anti-progressista e que entende que o Islão deve “regressar” à sua prática doutrinal original. Imaginemos movimentos cristãos ou judaicos com a mesma agenda e dificilmente o resultado seria distinto (intolerância, violência, sadismo). Imaginemos uma seita cristã que assumisse que o cristianismo actual (sob todas as suas formas) não era puro, e sofria de perversões várias à “mensagem original”, não seria lógico relembrar-mo-nos das práticas da Santa Inquisição?
Relembro também uma coisa curiosa: se atentarmos à idade da religião Muçulmana, iremos verificar que terá qualquer coisa como 1500 anos, isto significa grosso modo, que está ainda na sua “idade média”! Como era o cristianismo na Idade Média?!
Termino dizendo que, não tenho qualquer intenção de defender o Islão, bem como qualquer outra religião, até porque vejo as religiões organizadas, como instituições que têm essencialmente como principal objectivo a manipulação das massas oferecendo a “salvação” e mitigando o medo muito humano da morte e do desconhecido. Não tenho por isso qualquer problema com as religiões enquanto manifestações individuais de espiritualidade e fé “em algo” (ainda que não comungue delas), no entanto nunca aceitarei que sob o manto da “Instituição” me tentem “converter”, limitando a minha liberdade individual. Posto isto, aquilo que pretendo com este post, num esforço de me distanciar (e é-me relativamente fácil fazê-lo sendo agnóstico) da natureza emocional da discussão religiosa, é racionalmente compreender os fenómenos em discussão. E tendo isto em conta, nunca posso entender que se continue a assumir que a religião muçulmana é uma religião “do mal” pelas razões que teriam, sob o mesmo raciocínio, de rotular da mesma forma as outras religiões abraamicas.