Em 1906, José de Alvalade deu início a um projecto social e desportivo com uma frase que ficou célebre: “Queremos que o Sporting seja um clube grande, tão grande como os maiores da Europa”. Cerca de 90 anos mais tarde, José Roquette, bisneto do fundador deu início a um outro projecto com uma outra frase que, embora não tenha sido celebrizada como a primeira, não deixou de ficar na memória de muitos sportinguistas e era qualquer coisa como isto: “a sustentabilidade do Sporting nunca mais dependerá da bola que bate no poste.” Quinze anos depois de um projecto que foi pedantesco na génese, incompetente na execução e ruinoso nos efeitos, ei-las de volta para atormentar o Sporting e os sportinguistas: as bolas no poste, ou num sentido mais lato, o azar e as vicissitudes do futebol, que não cessam de se intrometer entre o Sporting e o cumprimento do seu desígnio de ser tão grande como os maiores da Europa.
Face àquilo a que se propunha José Roquette, dizer actualmente que o que tem faltado ao Sporting para obter as grandes conquistas é “um bocadinho de sorte”, como disse Bettencourt no ano passado, ou dizer que a presente época tem corrido mal devido à quantidade de bolas no poste como já se começa a insinuar, poderia ser um reconhecimento do fracasso do Projecto Roquette. Mas é muito mais do que isso: é acima de tudo uma irracionalidade e um reflexo da cultura de alijamento de responsabilidades e de impunidade que impera em Alvalade.
Vá-se lá perceber: se um jogador falha uma intercepção ou erra um passe e com isso possibilita ao adversário ficar na posse da bola, é maldito e assobiado; mas se o jogador faz um remate à baliza e a bola acerta no poste, quem se maldiz é a sorte e o poste, como se a sorte tivesse uma mão invisível que guia a bola na direcção do poste, ou como se o poste fosse uma entidade móvel que tem por missão desviar as bolas da baliza. O futebol é um fenómeno que vive mais de emoção do que da razão, mas qual será o mal em racionalizar um remate ao poste e aceitá-lo como aquilo que ele de facto é ─ uma falta de pontaria ─ em vez de lhe atribuir um significado metafísico? Os postes e a barra estão lá para delimitar a baliza e portanto fazem parte do jogo como elementos passivos. Se um jogador remata e a bola acerta no poste, é porque não teve pontaria ou engenho suficientes para colocar a bola na baliza, da mesma maneira que o defesa não teve pontaria ou engenho suficientes para receber um passe ou interceptar uma bola e com isso a deixou na posse do adversário. Não há portanto mais razões para criticar um do que para criticar outro, ou mais razões para atribuir a falha ao azar num caso do que noutro. Foi perto, foi quase, mas não foi o suficiente. Dizer que é um azar a bola bater no poste, como se o poste fosse culpado por estar onde está, é como culpar a bola por ser redonda e dificultar a sua intercepção pelo guarda-redes quando sofremos um golo.
As bolas no poste, em maior ou menor número fazem parte do jogo do futebol. Se tendemos a dar-lhes mais importância do que têm (ao ponto de, por exemplo, nos darmos ao trabalho de as contabilizar semanalmente, quando muito mais interessante e útil seria registar a evolução de todos os remates na globalidade) é meramente pelo efeito visual e sonoro que provocam, juntamente com as emoções que esses efeitos desencadeiam quer na equipa quer nos adeptos. E é por aí que deviam ser valorizadas, e não como se valessem meio golo, como se dessem pontos e vitórias, e muito menos como se servissem de desculpa para o desempenho medíocre da equipa e para mais uma época fracassada.
Se calhar insistirão alguns, dizendo que este ano o Sporting é a equipa com mais remates ao poste no campeonato e que esse facto prova que esta época está a ser anormalmente azarada. Mas mesmo admitindo que uma bola ao poste é um azar, esse argumento é uma falácia, por 3 razões. A primeira é que, pela lógica das coisas, quando se faz a contabilidade de bolas ao poste, em cada ano e em cada momento haverá uma equipa com mais bolas ao poste, tal como haverá uma equipa com menos bolas ao poste do que as outras ─ anormal e raro seria se todas as equipas tivessem exactamente o mesmo número de bolas ao poste; anormal e raro seria se o Sporting, e só o Sporting, ano após ano fosse recordista de remates ao poste; mas faça-se a contabilidade de remates ao poste de todas as equipas ao longo de todos os anos e estou convencido que se verá que o Sporting não é, em média, mais “azarado” que as outras equipas; se este ano temos mais remates ao poste que os outros, também chegará o ano (ou até já chegou) em que seremos a equipa com menos remates ao poste; ou seja, com uma visão mais global do fenómeno, chega-se à conclusão que esta anormalidade temporária é ela própria normal. A segunda razão é que os nossos remates ao poste pouco ou nada têm a ver com as nossas falhas defensivas; se é verdade que este ano muitos dos remates que fizemos foram “desviados” pelos postes adversários, não é menos verdade que este ano a nossa defesa continua a parecer um pass-vite, e portanto a falta de eficácia ofensiva por si só não pode explicar o mau desempenho da equipa. A terceira razão pela qual é falacioso invocar o número de bolas ao poste para justificar o mau desempenho da equipa e o azar do clube, é simplesmente o facto de que este ano não temos tido só “azar”, e arrisco mesmo a dizer que já tivemos sorte que chegasse para anular o “azar” das bolas ao poste; estou a falar por exemplo das abébias dos defesas do Brondby que nos permitiram dar a volta à eliminatória no jogo da 2ª mão, ou das arbitragens dos jogos com a Naval, com o Olhanense, com o Lille e até com FCP, já para não falar da arbitragem do jogo com o Guimarães que de nada valeu, porque mesmo assim perdemos.
E era nesses golpes de sorte que queria agora pegar. Porque para quem interessa justificar o insucesso da equipa com o azar e as bolas ao poste, não é bom falar dos golpes de sorte: tudo o que é mau no clube e na equipa será sempre culpa dos outros, do azar ou do destino, enquanto tudo o que de bom estiver será sempre mérito próprio. E a quem interessa justificar o insucesso do Sporting com o azar e as bolas ao poste? A muita gente: antes de mais, às pessoas que estão agarradas a cargos dos quais se pede muito mais do que elas são capazes de dar e portanto não assumirão erros ou responsabilidades que teriam como consequência óbvia o seu despedimento ou renúncia; depois, às pessoas que, após uma derrota ou uma eliminação, só dormem descansadas se acreditarem que foi feito tudo o que era possível e que se não se ganhou foi por causa do árbitro, da relva ou do poste; e até à comunicação social e à cultura popular, que cada vez mais vêem no Sporting terreno fértil para cultivar a curiosa, burlesca e patética imagem de um clube atormentado pelo azar, como se estivesse pré-destinado a cumprir longos períodos sem conquistas, a perder finais de competições europeias na própria casa e a ter adeptos que sistematicamente aparecem nas fotografias com uma cara de desolação. Ou seja, interessa a toda a gente, menos aos que têm realmente saudades de vibrar com uma conquista épica e grandiosa, ou de comemorar um golo com um salto tão efusivo que faz partir o candeeiro do tecto. Deviam ser esses momentos de alegria e realização que devíamos contar e recordar, muito mais do que as bolas ao poste.
Resumindo, faz-me impressão que num clube com a história e dimensão do Sporting Clube de Portugal, num clube que todos os anos se assume como candidato ao título, num clube que se quer ganhador e competitivo se atribua o insucesso ao azar e às bolas no poste. Nos grandes clubes deve cultivar-se a excelência e o bom deve ser inimigo do óptimo, para que na hora da verdade o trabalho, o esforço e a competência se sobreponham aos factores impossíveis de controlar; quando se perde há que dizer que se devia ter ganho, e quando se ganha pela margem mínima há que dizer que se devia ter ganho por mais. Nos grandes clubes há que ter espírito combativo e em vez de se lamentar a falta de sorte e as bolas ao poste deve lutar-se contra os autocarros à frente da baliza adversária, contra os árbitros, contra as condições atmosféricas e contra os relvados podres. E se assim for não será preciso andar a contar as bolas ao poste; de facto, mais importante do que as contar… é tê-las no sítio. :mrgreen: