Incrível: neste forum abrem-se tópicos quando morre um borra-botas qualquer de uma banda obscura ou um realizador de filmes que ninguém vê. Mas quando desaparece o maior estadista dos tempos modernos da Republica Portuguesa… nada.
Ah, ja’ sei, porque nos últimos anos tornou-se moda arrasar Mário Soares. Nas redes sociais popularizaram-se historias demoníacas sobre a personagem, que quase o tornam no Belzebu encarnado em pessoa. Hoje em dia e’ mais cool elogiar o Salazar do que mostrar admiração por Mário Soares. Calcula-se que os autores de inúmeros posts a denegrir, insultar e ate’ a celebrar a morte de Mário Soares não pensam, por um segundo sequer, que um dos principais motivos porque podem emitir as suas “opiniões” e’ porque o agora defunto lutou uma vida inteira para que o pudessem fazer.
Mas não, os escritos boçais tornam-se virais e a verdade absoluta foi estabelecida: Soares, o traidor da pátria, o gestor ruinoso, o exterminador do império e inimigo numero um dos retornados (ja’ sei que a palavra “retornado” não e’ politicamente correcta, mas estou a marimbar-me para isso). 99% dos que opinam sobre o homem não vão ter 1% da sua coragem, da sua determinação, do seu carisma e da sua convicção durante toda a vossa vida. Vao passa-la, em grande parte, a ditar sentenças com o traseiro aquecido pelo sofá.
Mário Soares cometeu erros tremendos durante as suas governações e missões diplomáticas. Cometeu-os em circunstancias difíceis e em contextos explosivos. Cometeu-os porque estava la’. Podia ter fugido, assistido aos acontecimentos esperando ventos mais favoráveis, mas não, levantou o traseiro do sofá e deu o corpo ao manifesto (um conceito indecifrável para os juízes das redes sociais).
Hoje em dia fala-se em estar exilado do seu pais natal como uma brincadeira de crianças. Ser perseguido pela PIDE como um nível do jogo Counter-Strike. Defender convicções e’ como decidir se a foto vai com dab ou com swag. Vivemos a era da ignorância letrada, todos arrotam postas de pescada e são juízes do mundo que os rodeia.
Soares não lutou apenas para derrubar a ditadura mas também, e acima de tudo, para garantir que Portugal não se tornasse na Cuba da Europa. Se não fosse o seu papel determinante, estavam agora muitos meninos com um telemóvel Prestigio na mão e uma hora de internet (censurada) por semana. Mas isso não interessa para nada, olha o que ele fez aos retornados, um crime, um atentado contra os direitos humanos!!!
Por principio, recuso-me a discutir a questão dos retornados. Tive familiares muito próximos que viveram essa experiência. Amigos e vizinhos também. Nao conheço nenhum que tenha vindo para a metrópole com uma mão ‘a frente e outra atrás. Mas isso nem e’ importante. A questão dos retornados só pode ser discutida depois de se concluir a discussão sobre a vida que a maioria levava em África. Ou melhor, a vida dos pretos que os serviam. Esses, porventura, nunca tiveram direitos. Pois, já sei, tinham comida e roupa lavada. Pois…
A vida de Mário Soares e’ feita de enormes vitorias e de gigantescas derrotas. Uma vida na verdadeira essência da palavra. Foi grande, foi pequeno, foi gigante, foi anão, foi ele próprio e não o que outros queriam que ele fosse. Devemos-lhe a maior divida de gratidão como nação. A gratidão a alguém que sempre lutou por aquilo em que acreditava. No terreno, na vida real, no mundo dos sentimentos e das ideias. Hoje luta-se pelo like do facebook, o numero de partilhas e o sucesso nas nuvens etereas da internet. Os cobardes julgam a coragem. Foi para isto que se lutou pela liberdade?
Os meus sentimentos 'a familia e a todos os que privaram, de longe ou de perto, com a figura de Mario Soares.