A Batalha de Ourique, a questão dos cinco reis mouros
Coloco aqui, à crítica leonina, uma interpretação que diria pessoal (tive-a após ler partes da Bíblia) sobre como terá, eventualmente, surgido a ideia de que D. Afonso Henriques venceu cinco reis mouros na batalha de Ourique, em 1139.
A batalha de Ourique foi travada aos 25 dias de Julho de 1139, dia de Santiago, no Alentejo, com as fases cruciais do confronto a ocorrerem na colina de São Pedro das Cabeças, entre as forças do nosso primeiro rei e um exército islâmico almorávida. Está diretamente associada à aclamação de Afonso Henriques como rei pela nobreza guerreira, logo antes do confronto ou logo depois, passando o infante a intitular-se Rei dos Portugueses, sem qualquer autorização de Afonso VII de Leão e Castela, Imperador da Hispânia.
À época, a povoação mais relevante nas proximidades era a de Ourique, mas hoje é a vila de Valverde situada 4 km a noroeste de São Pedro das Cabeças. A assinalar o local, temos um monumento de 1940 completado por outro de 1989, bem como uma pequena ermida mandada fazer pelo rei D. Sebastião, em 1573, no mesmo sítio onde existia uma outra, rústica e então em derrocada, mandada erigir pelo próprio D. Afonso Henriques logo depois da batalha.
A crónica Vida de São Teotónio (1082 a 1162), que foi canonizado pelo papa Alexandre III, em 1163, o primeiro santo português e primeiro prior de Santa Cruz de Coimbra, confessor de D. Afonso Henriques, escrita por um seu companheiro anónimo em 1163, precisa que o nosso primeiro rei venceu, a 25 de Julho, dia de Santiago, cinco reis pagãos acompanhados de grande multidão de mouros dos dois lados do estreito (de Gibraltar).
Pode ter sido escrita antes da Crónica dos Godos, a que se deu o título coletivo de «Annales Portucalenses Veteres» - Anais Portugueses Velhos, que serão de fins do século XII e princípios do século XIII, onde a batalha de Ourique é descrita com pormenores que levam autores modernos a duvidar dos mesmos. Aqui, fala-se da multidão de combatentes muçulmanos de Espanha e de Além-Mar (Magrebe), entre eles guerreiros das taifas (territórios independentes) de Sevilha, Badajoz, Elvas, Évora e Beja, e de outros castelos, incluindo amazonas que combatiam a pé ou a cavalo. Isto levou, posteriormente, a admitir que as cinco taifas corresponderiam aos cinco reis, embora seja evidente que só comportavam uma parte do total do exército mouro e a Crónica não use essa expressão. Importante, é que, embora de autor desconhecido, há hoje a convicção de que esta Crónica também foi produzida em Santa Cruz de Coimbra, tal como a Vida de São Teotónio.
Vamos agora expor resumidamente algumas passagens do Antigo Testamento da Bíblia que talvez sejam a explicação para a questão em epígrafe:
Adonisec, rei de Jerusalém, soube que Josué tinha tomado a cidade de Ai,… Soube ainda que os habitantes de Guibeon tinham feito a paz com os israelitas e viviam com eles… Uniram-se, pois, os cinco reis amorreus, isto é o rei de Jerusalém, o de Hebron, o de Jarmut, o de Láquis e o de Heglon e saíram com os seus exércitos para cercarem e atacarem Guibeon… Josué partiu de Guilgal, caminhou durante toda a noite e atacou de surpresa os reis amorreus…o Senhor fez desabar sobre eles uma tempestade de grandes pedras de granizo… E foram mais os que morreram por causa das pedras de granizo do que aqueles que os israelitas mataram à espada… O Senhor combatia por Israel… Josué e os israelitas derrotaram-nos e destruíram-nos…Mandou depois matar os cinco reis. [Josué 10].
…, porque são cinco os chefes dos filisteus, uma vez que o mesmo castigo vos atingiu a vocês e aos cinco chefes… das seguintes cidades: Asdod, Gaza, Ascalon, Gat e Ecron…, os filisteus avançaram para atacar o povo de Israel, mas o Senhor mandou contra eles fortes trovões. Os filisteus entraram em pânico e Israel derrotou-os. [Samuel 6 e 7].
Considerando que quem escreveu sobre a batalha de Ourique foram clérigos do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, poucas décadas depois do confronto, não será que se inspiraram no modelo bíblico dos cinco reis ou chefes inimigos do povo de Deus derrotados numa grande batalha para construirem a sua narrativa? Não será que os cinco reis pagãos de Ourique são decalcados dos cinco reis amorreus e dos cinco os chefes dos filisteus? Não será que as taifas de Sevilha, Badajoz, Elvas, Évora e Beja são referidas por inspiração nos amorreus de Jerusalém, de Hebron, de Jarmut, de Láquis e Heglon, e nos filisteus de Asdod, Gaza, Ascalon, Gat e Ecron?
Era, talvez, a forma ideal de realçar as importância da batalha de Ourique para D. Afonso Henriques e para os Portugueses… Uma vitória contra os muçulmanos idêntica às grandes vitórias bíblicas contra os infiéis. Daria, talvez no final do reinado, azo ao brasão real com os cinco escudetes (os cinco reis?) repletos de besantes (as grandes pedras de granizo com que Deus ajudou?).