Não existem assuntos que não padeçam duma vontade insana de revisionar. Mesmo quando são óbvios, claros ou apoiados em factos sólidos como a testa do Slimani. O problema é quando esta vontade navega para além da bruma esquizóide e dobra o cabo da imbecilidade pura. Foi isto que aconteceu no Sporting-Porto deste fim-de-semana.
Os factos falam. Ou melhor, gritam, esbracejam e pedem para que os olhemos sem ser de soslaio. Porque, na verdade, não gostam de ser ignorados e precisam de ser reconhecidos - tal como as pessoas. Os factos são a única forma possível de vislumbrar a verdade, mais do que a fé ou o querer. E tem existido muita fé - da má - nas apreciações feitas sobre o último clássico.
Agora vamos dar oportunidade aos factos de falarem um pouco. Eles dizem o seguinte: existiram cinco situações polémicas neste jogo. Elas são: o fora-de-jogo no golo, a entrada do Cédric sobre o Jackson, a expulsão do Fernando, a falta quando o Mané está isolado e a falta do Danilo sobre o Capel. Nestas cinco situações polémicas, o árbitro apitou três vezes a favor do Sporting e duas vezes contra. A enumeração não serve como argumento, mas apoia a tese da imbecilidade.
No lance do Cédric, o árbitro poderia ter marcado penalti. Como não poderia. É um lance duvidoso, suscitando opiniões divergentes mesmo em antigos árbitros. Aceitaria que fosse marcado, tal como aceito não ter sido. No lance do fora-de-jogo acontece o mesmo. Sim, André Martins está fora de jogo. Mas não está dois metros adiantado, está alguns centímetros sendo mesmo imperceptível nalgumas fotografias do momento do passe. E o que diz a regra? Em caso de dúvida deixa-se jogar. Ora, se um lance suscita dúvidas até em fotografias, também terá decerto provocado dúvida no fiscal-de-linha. Não é de forma alguma uma decisão polémica, de flagrante delito e grosseira. É um erro legítimo, numa situação de difícil avaliação onde as regras beneficiam quem ataca.
As expulsões. Vi em vários programas representantes do Sporting - ou deles próprios - a dizer que poderia ter sido dado um amarelo no lance do Fernando com o Montero. É um chega para lá, daqueles que ocorrem no recreio da escola quando duas crianças com ranho no nariz resolvem lutar por um berlinde. O problema é que isto não é verdade. O Fernando corre, com intenção, e de seguida dá uma cotovelada nas costelas do Montero. Eu posso-me voluntariar para fazer o mesmo a todos aqueles que defendem a amostragem do amarelo, talvez assim defendam algo diferente (ou talvez fiquem entumescentes quando levam porrada, há pessoas assim). Ou seja, é vermelho indiscutível. O lance da falta do Danilo sobre o Capel, por outro lado, é discutível. Aceitaria a decisão da expulsão, tal como aceito a não amostragem do cartão. É uma falta dura, num movimento atacante, mas ocorre numa zona anterior do terreno. Aceito a decisão do árbitro. Contudo, já não aceito a decisão da falta sobre o Mané. O jogador vai isolado - sem nenhum defensor à sua frente - e é travado em falta. As regras são claras: falta e expulsão.
Ora bem, fazendo a contabilidade, temos três situações duvidosas (Capel, Martins e Cédric), sendo que duas foram decididas a favor do Sporting e uma contra. Depois temos duas situações claras (Mané e Fernando), sendo que uma foi decidida a favor e outra contra. O argumento que em caso de dúvida o árbitro beneficiou o Sporting surge como uma imbecilidade apenas ao alcance de um porquinho da índia - são simpáticos, mas muito burros e o termo porquinho é bem utilizado neste contexto. O árbitro não expulsou o jogador do Porto num lance óbvio e não marcou um penalti duvidoso, sendo que no fora-de-jogo as regras beneficiam quem ataca.
Dizer-se que o Sporting ganhou o jogo por causa do árbitro está ao nível de um tipo qualquer que obtém favores através de prostitutas, que casa com duas delas, que se peida em situações festivas ou que andou a roubar fábricas de rebuçados durante 30 anos e quando um amigo lhe surripia um Halls Mentol-Lyptus chama imediatamente a polícia, os bombeiros e o presidente da República. É estúpido e desonesto.
Em suma, o Sporting ganhou porque foi melhor. É certo que um erro do árbitro influenciou diretamente o resultado, mas também existiram erros e situações duvidosas a favor do Porto que influenciaram o resultado. Além disso, é um erro não-grosseiro, num lance de difícil avaliação onde as regras dizem claramente para deixar jogar. Bem sei que o Porto está habituado a que a dúvida seja uma certeza azul, mas convém ter algum pudor. Assim não são mais do que uma Érica Fontes a bater noutra mulher porque esta dormiu com dois homens diferentes numa semana.