A prestação de contas relativas ao exercício do ano desportivo 2003/2004 anuncia-se como um prenúncio de morte para a maior parte das sociedades desportivas, vulgo SAD. Sporting, Sp. Braga, Estoril, Alverca, Benfica, Vitória de Setúbal, entre outras, estão em risco de serem dissolvidas, em 2005, se chegarem ao fim da presente época com números idênticos aos apresentados este ano. «A situação é grave e pode significar o fim do futebol profissional em Portugal a curto prazo», disseram ao DN vários dirigentes das SAD.
De acordo com o n.º 4 do artigo 35.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), as sociedades que apresentem em dois anos consecutivos um capital próprio inferior à metade do capital social são imediatamente dissolvidas, iniciando-se a fase de liquidação, ou seja, desaparecem.
As SAD são, para todos os efeitos, sociedades comerciais. No entanto, beneficiam de uma prerrogativa do Decreto-Lei n.º 162/2002 de 11 de Julho, segundo a qual só a partir do exercício de 2003 ficaram sujeitas à aplicação do n.º 4 do art. 35.º. Por outro lado, é-lhes permitido coincidir o exercício económico com a época desportiva - 30 de a 31 de Julho -, conforme o DL n.º 67/97, de 3 de Abril, diferentemente das restantes sociedades, que se regem pelo ano civil.
A primeira questão que se coloca, neste momento, é a de saber se, no caso das SAD, o primeiro exercício relevante para efeitos de aplicação do n.º 4 do art. 35.º - os tais dois anos consecutivos com contas negativas - é o correspondente à época 2002/2003 ou à época 2003/ /2004. Caso o Ministério Público (MP) acolha a primeira hipótese, muitas das SAD «morrem» já, incluindo o Benfica, Sporting, o Estoril, o Alverca e o Braga - uma vez que, quer neste ano quer no ano passado, chegaram ao fim do exercício com capitais próprios abaixo de metade do capital social.
A questão não é pacífica. Nuno Barbosa, advogado e autor do artigo «Morrer da cura: a aplicação do art. 35.º do CSC às SAD» - publicado n.º 4 da revista Desporto & Direito -, disse ao DN que «o entendimento mais correcto será o de considerar como o primeiro exercício relevante - para a aplicação do n.º 4 do art. 35.º às SAD - o correspondente à época 2003/2004». Em sua opinião, «a lei quis consagrar um período mínimo de adaptação que não pode ser reduzido». Se esta for também a tese do MP - o que é discutível -, as SAD em risco têm ainda a época 2004/2005 para se livrarem da dissolução. Mas a gestão ficará mais condicionada.
Num contexto destes, as precauções irão obrigar a um maior rigor nas despesas e à redução do capital social - o que quase todas já fizeram (ver texto ao lado). Contudo, a diminuição dos investimentos, nomeadamente em novos jogadores, poderá trazer mais prejuízos do que benefícios. Ou seja, «as SAD que este ano apresentarem capitais próprios abaixo de metade do capital social poderão estar a assinar, já, a sua sentença de morte», reconhecem os vários dirigentes contactados pelo DN.
EXPECTATIVA. A situação é grave, admitem também os juristas, questionando se o art. 35.º do CSC deve aplicar-se, ou não, às SAD. «A desvinculação destas àquele artigo, atribuindo-lhes normas especiais, seria a tábua de salvação», dizem.
Duarte Nuno de Oliveira Rocha, advogado especializado nesta área, defende que será necessário, em primeiro lugar, clarificar se as sociedades desportivas são, efectivamente, sociedades comerciais. «Estas têm como objecto os actos de comércio, enquanto as primeiras prosseguem a participação numa modalidade em competição desportiva de carácter profissional», explicou ao DN. Neste sentido, pergunta: «Poder-se-á aplicar o artigo 35.º às SAD?»
Nuno Barbosa lembra, por seu lado, que as sociedades desportivas são sociedades anónimas especiais, sendo-lhes aplicáveis, subsidiariamente, as normas que regulam as sociedades anónimas comuns (art. 5º, DL 67/97). Como tal, «é indiscutível a aplicação do art. 35.º do CSC às SAD», defende. Além disso, o n.º 4 do artigo 230.º do Código Comercial explicita como actividade comercial a exploração de quaisquer espectáculos públicos. «Não há dúvida que as SAD praticam uma actividade comercial, pois do seu objecto consta a promoção e organização de espectáculos desportivos», frisou.
Ao que o DN apurou, este debate está a agitar o mundo desportivo.
A eventual desvinculação das SAD ao artigo 35.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) é «um assunto que nem merece discussão» disse ao DN Miguel Galvão Teles, defendendo que o Governo deveria mexer no articulado. «As SAD são empresas reguladas por disposições especiais, cujos casos omissos são remetidos para a lei geral, ou seja, o CSC», explicou o presidente da Assembleia Geral da SAD do Sporting, contrariando aqueles que alegam que as SAD têm um objecto diferente das sociedades comerciais.
Para o presidente da SAD do Estoril, António Figueiredo, a vinculação ao art. 35.º «um absurdo», até porque «toda a gente sabe que as contas dos clubes estão cheias de reservas ocultas», frisou. Uma tese corroborada pelo director financeiros da SAD do FC Porto, Fernando Gomes, que admitiu, concordar com a referida vinculação «desde que seja permitida a rentabilização dos activos, no sentido de acabar com as reservas ocultas». Se isso acontecer, «concordo que as SAD fiquem sujeitas a leis do comércio, já que estão cada vez mais viradas para um negócio que é o futebol profissional», adiantou ao DN.
Chumbita Nunes, presidente da SAD do Vitória de Setúbal, é outro dos dirigentes desportivos que esperam ver elaborada uma medida de excepção que vise as sociedades desportivas, tal como António Salvador. O presidente da SAD bracarense considera que, «em prol da melhoria dos resultados apresentados este ano, a lei tem forçosamente de mudar de forma a não asfixiar as SAD».
O «temível» artigo 35.º pode remeter as sociedades desportivas ao incumprimento do prazo (31 de Outubro) - estipulado pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP) para a entrega das contas do exercício 2003-2004. Mas o advogado Dias Ferreira discorda desta argumentação, esclarecendo que a LPFP não tem competência para fiscalizar as contas. «O que pode fazer é sancionar pelo atraso, e não por apresentarem números ilegais ao abrigo da CSC», explicou. Para o membro da Comissão de Auditoria da Liga de Basquetebol, «a razão pela qual as SAD e clubes retardam a apresentação das contas será para terem mais tempo para as aldrabar, claramente».
Uma acusação grave que o advogado fundamenta com o seguinte exemplo: «Um clube tem dez atletas, mas só declara dois à Segurança Social e ao Fisco… Depois o Ministério das Finanças envia-lhe uma declaração a confirmar os descontos, mas sem referir o número concreto dos atletas envolvidos. Cabe à Liga descobrir essas falcatruas, pois se há um clube com dez jogadores e só dois descontam, na prática existe fuga aos impostos no valor de oito atletas.»
Legislação
O que diz o controverso artigo 35.º
- Os membros da administração que, pela contas do exercício, verifiquem estar perdida metade do capital social devem mencionar expressamente tal facto no relatório de gestão de contas e propor aos sócios uma ou mais da seguintes medidas:
a) A dissolução da sociedade;
b) A redução do capital social;
c) A realização de entradas em dinheiro que mantenham pelo menos em dois terços a cobertura do capital social;
d) A adopção de medidas concretas tendentes a manter pelo menos em dois terços a cobertura do capital social;
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Considera-se estar perdida metade do capital social quando o capital próprio constante do balanço do exercício for inferior a metade do capital social.
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Os membros da administração devem apresentar a proposta prevista no n.º 1 na assembleia geral que apreciar as contas do exercício, ou em assembleia convocada para os 90 dias seguintes à data do início da assembleia ou à aprovação judicial, nos casos previstos no artigo 67.º.
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Mantendo-se a situação de perda de metade do capital social no final do exercício seguinte àquele a que se refere o n.º 1, considera-se a sociedade imediatamente dissolvida, desde a aprovação das contas daquele exercício, assumindo os administradores, a partir daquele momento, a competência de liquidatários.
As contas das SAD do FC Porto, Sporting e Sporting de Braga apresentaram capitais próprios abaixo de metade do capital social desde o ano 2000, segundo dados da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). A situação negativa verificou-se no Porto entre 2001 e 2003, tendo, entretanto, melhorado a sua «saúde» financeira; no clube leonino entre os anos 2000 e 2003; em Braga, em 2000 e 2001, mantendo-se estas duas SAD em situação de falência técnica. Ao abrigo da actual lei, já estariam dissolvidas.
Neste momento, e depois de conhecido o valor do capital próprio e do capital social da totalidade das SAD da Superliga (10) relativamente ao exercício de 2003-2004, apenas as SAD do FC Porto, Leiria, Boavista e Belenenses apresentam dados optimistas. Benfica, Sporting, Sp. Braga , Estoril e Vit. Setúbal revelaram números problemáticos ao abrigo do art. 35.º do CSC. No segredo dos deuses estão os valores do capital próprio da SAD do Marítimo. Contactados pelo DN, os dirigentes Carlos Pereira e Rui Nóbrega disseram desconhecer os números, revelando apenas o capital social (ver coluna ao lado).
Apesar dos resultados positivos, a SAD portista está a ponderar reduzir o capital social e, ao mesmo tempo, promover a entrada de novos accionistas que permitam manter em pelo menos dois terços a cobertura do capital social. Já no caso dos leirienses, «a tendência será para aumentar o rácio de 50,9% do capital próprio, em relação ao capital social, baseado nos números do exercício de 2003-2004», afirmou ao DN Vasco Pinto Leite.
O Sporting mantém as contas em situação de falência técnica, sendo que na presente época já conta com o peso do tão temido n.º 4 do artigo 35.º do CSC. Os leões apresentam neste momento um capital próprio negativo de cerca de 47,246 milhões de euros, segundo dados apresentados à CMVM. Em assembleia geral (AG), a SAD leonina «decidiu» reduzir o capital social de 54,890 milhões de euros para 22 milhões, para evitar a entrada na lista negra das que no final dos exercício se arriscam à dissolução, explicou Miguel Galvão Teles. Uma estratégia que deve ser seguida na Luz, segundo fontes da SAD. As contas do Benfica apresentam um capital próprio de 18,782 milhões de euros, muito inferior ao capital social de 75 milhões de euros.
Medidas que, segundo o DN apurou, não vão ser seguidas em Braga. A SAD apresenta um capital próprio negativo de cerca de 2, 5 milhões de euros e um capital social na ordem dos cinco milhões, o que significa também falência técnica. Na Cidade dos Arcebispos, a opção será aumentar o capital social com base nas contas de 2003/2004, com resultados líquidos de dois milhões de euros, resultado do sucesso desportivo e a rentabilização dos activos, leia-se jogadores.
A situação da maioria das SAD é preocupante. A Alverca SAD (Liga de Honra), por exemplo, só em meados de Novembro vai prestar contas aos sócios relativas a 2003-2004 , sendo que em 2002-2003 já apresentou resultados muito abaixo do capital social, indo agora repetir o mesmo panorama. Em idêntica situação está o Estoril, cuja AG se realiza apenas em finais deste mês. A SAD pondera, igualmente, reduzir o capital social, como explicou ao DN António Figueiredo. Relativamente ao exercício da época passada deverá apresentar lucros na ordem dos 400 mil euros, mas sem se livrar das pressões do artigo 35.º do Código das Sociedades Comerciais.
O Conselho Superior do Desporto (CSD) vai ter competências para fiscalizar as contas das SAD, no âmbito da nova lei de bases do desporto - em vigor desde 21 de Julho. A informação foi avançada ao DN por Carlos Marta, presidente daquela entidade. Para o director executivo da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP), Francisco da Cunha Leal, tais funções serão consideradas interferência «terrorista» (ver entrevista).
O Governo terá ainda de regulamentar o CSD. No artigo 15.º da Lei de Bases diz-se que o organismo «funciona de forma permanente junto do membro do Governo responsável pela área do desporto, e exerce funções desportivas, fiscalizadoras e de arbitragem desportiva como mecanismo alternativo de resolução de litígios».
Segundo Carlos Marta, a regulamentação está a ser pensada no sentido de que o CSD tenha poderes de decisão, ao contrário do que acontecia com a anterior Lei de Bases, que só lhe atribuía poderes consultivos. Neste sentido, explicou, o CSD vai estar dotado de uma equipa especializada que terá como função analisar «de forma mais directa e objectiva» o trabalho de todas as SAD e clubes, incluindo as contas. A regulamentação do diploma está a decorrer, desconhecendo-se quando entrará em vigor, acrescentou o também presidente da Câmara de Tondela.
O CSD vai ter uma competência que não tem a LPFP. Contudo, esta poderá sancionar as SAD e clubes que se atrasem na apresentação das contas, afectando, inclusive, o desempenho das respectivas equipas no campeonato. Segundo o art.º 56.º do Regulamento Disciplinar da Liga de Clubes, estão previstas multas no valor de cinco mil a 10 euros pelo não cumprimento dos prazos, seguido da instauração de um processo disciplinar, em primeira instância, podendo culminar na subtracção de três pontos à respectiva equipa em competição.
No fundo, os resultados desportivos podem ser prejudicados pela má gestão dos dirigentes, se assim se considerar o não cumprimento da lei, embora não haja notícias de que tal já tenha verificado.
O prazo para os clubes e SAD entregarem as contas do exercício de 2003/2004 acabou a 31 de Outubro (na Superliga há dez SAD). Por enquanto, e tanto quanto o DN apurou, a maior parte já regularizou a situação. O que não é o caso, por exemplo, do Estoril e Alverca.
Os canarinhos, pela voz do presidente da SAD, António Figueiredo, confirmou que a Assembleia Geral (AG) da SAD só está marcada para meados do mês de Novembro, aguardando «bom senso» do organismo que regula os campeonatos profissionais para «dar» um prazo suplementar: «É a associação patronal que mais exigências faz aos associados.» Esta ideia agradaria também ao Vitória de Guimarães, com AG marcada para o dia 12 de Novembro.
Em 1998, a Liga de Clubes, então presidida por Valentim Loureiro, tentou constituir uma Comissão Técnica de Estatutos e Auditoria para fiscalizar as contas dos clubes profissionais a partir da época 98/99. Uma espécie de tróica de fiscais para passar a pente fino os livros dos clubes, que devia integrar um auditor, um ROC (revisor oficial de contas) e um economista, que podiam ser assessorados por dois juristas. Procedeu-se então a um casting para escolher os membros da tróica, tendo em atenção os predicados académicos e apetência profissional, mas sem descurar o emblema.
A Comissão Executiva da Liga de Clubes, presidida pelo major aprovou, então, uma lista de nomes a contactar por Guilherme Aguiar (director executivo da Liga depois de passar pelo FC Porto) e onde constavam os nomes de Fernando Seara (conhecido sócio do Benfica) e o economista Ernesto Ferreira da Silva (com ligações ao Sporting). Os elementos da comissão técnica deveriam trabalhar em regime part-time tendo como principal missão ajudar os clubes na transição da legislação anterior para a que agora vigora e que exige figurinos contabilísticos diferentes, conforme aderissem ao modelo «SAD» ou regime especial de gestão. Outra das missões da tróica era verificar se os clubes cumpriam os parâmetros financeiros fixados pela Liga e aprovados pelo Governo. E já nessa altura, os estatutos previam que «quem não respeitasse estes parâmetros descerá de divisão». Tal como hoje…