Um leão e o seu destino
Um Campeonato e quatro Taças. A época e seus sonhos. O entristecimento do Sporting é o espelho da sua queda no campeonato. As outras vias, SuperTaça, Taça de Portugal, Taça da Liga e Taça UEFA, podem ser, no entanto, quase como um drible a esse destino cinzento. O plano tem um guia espiritual claro em campo. Acaba um jogo do Sporting, e é a imagem de Moutinho que fica na retina. Sprints, garra, acelerações. Avança, recua, corta, faz carrinhos, grita, passa, remata… uff! Cansa só de ver. Pode parecer estranho mas acaba por ser vítima da sua qualidade. Porque joga bem em qualquer ponto do losango. É o médio com mais cultura de transição defensiva. Por isso, muitas vezes não joga no corredor central, onde tem mais influência no jogo, sobretudo se colocado no vértice ofensivo, a zona de criação atrás dos avançados. Nesse espaço, mais do que apenas organizador, é também um criador, provocando rupturas na defesa contrária, algo mais difícil quando parte das alas. Mais do que a alma da equipa, deve ser o seu cérebro, perto da baliza adversária. É nesse espaço que mora a melhor notícia da época: Vukcevic. Pelo poder de arranque com a bola, pela técnica agressiva, com a baliza nos olhos. Mas, apesar desta bela sociedade Moutinho-Vukcevic, o Sporting tem atravessado a época preso a uma crise existencial. Também pode parecer estranho, mas até um goleador mortífero como Liedson condiciona o seu sistema de jogo. Porque o seu futebol depende muito de quem está a seu lado e dos espaços que nas movimentações combinadas abrem para furar. Só entre os centrais, com extremos, a sua leveza física fica exposta. É uma razão forte para a inflexibilidade do 4x4x2 de Bento.
Os problemas de jogo começaram, no entanto, com a saída de Caneira, pilar do sector defensivo e ponto de equilíbrio do colectivo. Mais do que só um jogador, a importância dos laterais cresce dentro de um sistema como o 4x4x2.
Olhando os sistemas dos três grandes -FC Porto (4x3x3) Benfica (4x2x3x1) Sporting (4x4x2 losango), o leonino é o mais ‘táctico’ de todos. Ou seja, é o que obriga a uma dinâmica de movimentos zonas laterais-interiores mais exigente, pois a ocupação inicial do terreno é a menos racional de todas. Por isso, é a que exige mais qualidade individual para se soltar. Quando eficaz, é ideal para ter posse e circular a bola a meio-campo. Quando perde eficácia, é a que mais expõe as suas limitações. Muitas vezes, o talento é a imaginação defendendo-se de um defeito. Este Sporting não tem esse ‘talento’ mentiroso. Faltam-lhe saídas tácticas para as crises de forma (ou lesões) das suas individualidades. Cristalizou o seu jogo (sistema e estratégia) e ficou refém da sua própria coerência.
Na preparação da próxima época, sem abdicar da filosofia-base, é indispensável trabalhar outro sistema. Este é, aliás, um factor-chave nas grandes equipas. Saber manejar dois sistemas de jogo. É quase impossível treinar os dois ao mesmo tempo, mas, na progressão de uma época para outra, este crescimento é fundamental. Depois de enraizado o 4x4x2, o Sporting deve trabalhar outra opção. Mais do que dois jogadores para cada posição, deve ter dois jogadores diferentes para cada posição. O crescimento do Paulo Bento-treinador deve cruzar-se com o crescimento táctico do seu Sporting. A construção do plantel deve obedecer a estes princípios. Dar qualidade de forma cirúrgica.
Durante os jogos, é comum ver Bento a tirar notas. É quase como uma introspecção do jogo leonino. Um espelho escrito que deve ser um diagnóstico. Terá de estar nessas folhas a forma do leão solitário driblar o destino.
Uma equipa, uma ideia
É o grande ‘intruso’ no topo do Campeonato. Depois de uma época na berma do precipício, o Setúbal renasceu sem construir castelos na areia. Sente-se que a equipa luta, em cada jogo, contra dois adversários: o que está à sua frente e as suas próprias limitações. Sem superestrelas, com jogadores de ‘carne e osso’, prova como fazer uma boa equipa é algo demasiado complicado para ser apenas uma questão de dinheiro. Construída cirurgicamente por Carvalhal, este Vitória tem a força das boas ideias. Os golos de Pitbull, as defesas de Eduardo, mais Elias, Auri, Sandro, Janício… Pelo caminho, no Inverno, ficaram Mattheus e Edinho.
Os pilares estão na segurança defensiva. A melhor forma de começar a construir uma equipa no futebol moderno. Depois, é começar a esticar as linhas - os diferentes sectores do onze - em campo, sem nunca perder os elos de ligação entre elas. É esta a base do projecto Carvalhal, um treinador renascido. Na ‘montanha-russa’ que é a vida dos treinadores, a questão agora é saber como capitalizar este momento.
O actual Vitória é um sonhador inteligente. Porque nunca tira os pés da relva. Vendo o jogo como dinâmica, cumpre o princípio de, quando ataca, ‘aumentar’ o campo (a distância da linha defensiva até à atacante), e de, quando defende, o ‘encurtar’ (voltando a aproximar sectores) para o adversário atacar em menos espaço. É, por isso, que não existe futebol ofensivo e futebol defensivo. Existe futebol equilibrado. Futebol de ‘harmónio’. O resto é um potente remate com a bota esquerda do Pitbull. E já não é pouco…
De Chalana a Rui Costa
A mesma situação pode ter, em equipas diferentes, tratamentos distintos. Ou seja, se falamos de futebol, tudo é possível. Duas semanas após a partida de Camacho, seguiu-se uma derrota (eliminação da UEFA) e um empate (que permitiu a Guimarães e Sporting encostarem-se mais ao segundo lugar) mas Chalana foi reconfirmado como o treinador até ao final da época. O que mais custa é ver os treinadores perderem sem jogar com as suas ideias. Ou seja, sem escolherem os seus jogadores, sem poderem colocar em prática a sua filosofia de jogo. Perder com as ideias dos outros. Acontece a muitos treinadores, todas as épocas.
É diferente ser treinador e estar como treinador. Sem ruído ou o nome na ficha, Chalana tem-se assumido como treinador. Na mudança táctica de Getafe. Nas mudanças no onze contra o Marítimo. Tem demonstrado ideias. A análise a todas estas opções é outra questão. Após esta passagem, pode, por fim, ser mais do que o técnico que, num jogo solitário em 2002, inventou Miguel como lateral-direito. O actual Benfica necessitava desse ‘toque de Midas’ em outras posições.
A principal? À frente da defesa. A primeira fase de organização, antecâmara da fase de criação, desenhada à entrada da área adversária. Nem Petit, Bynia ou até Katsouranis o sabem fazer. Seria o lugar ideal para o actual Rui Costa. Com um ou dois pivôs, é indiferente. Protegia-o fisicamente. Dava maiores horizontes à sua visão de jogo. E podia jogar mais uma época. Acredito que, dos 36 para os 37 anos, ainda seria melhor director em campo do que nos gabinetes.