Comentário: [b]Bibi e Barak fabricam um desastre internacional[/b]
01.06.2010 - 08:50 Por Jorge Almeida Fernandes
Israel teve outrora o prestígio da competência do exército e das agências de informação. Nos últimos anos, sucedem-se os fiascos, o que muitos israelitas vivem como uma “ameaça existencial”. Mas, mais do que militar, o problema é exclusivamente político.
Olhe-se a operação de ontem de madrugada. A flotilha “Palestina Livre” tinha como objectivo público levar ajuda a Gaza. Foi organizada na Turquia por uma associação próxima do Hamas, a IHH, e era uma iniciativa armadilhada. No “plano A”, que teve o beneplácito turco, devia chamar a atenção para os palestinianos de Gaza, uma questão em que Israel já está dramaticamente isolado. No “plano B”, o sonhado pelo Hamas, levaria os israelitas a atacar uma expedição humanitária. E eles assim fizeram, em águas internacionais. O Hamas ganha em toda a linha.
Bradley Burston, analista do diário “Ha"aretz”, escrevia ontem na edição on-line: “Segunda guerra de Gaza: Israel perdeu-a no mar. (…) O cerco [de Gaza] tornou-se no Vietname de Israel.”
Avi Trengo, analista do “Yedioth Ahronoth”, pediu a demissão de Barak: “Israel precisa de um ministro da Defesa que saiba quando deve usar a força e quando a não deve usar.” Na véspera, apelara a que ele pusesse termo à ficção do cerco, que deixasse a flotilha ir para onde quisesse, mas não caísse “na armadilha”. A ordem de abordar a flotilha “sem violência” cria uma “percepção de fraqueza” dos soldados israelitas, que depois se transforma em brutalidade. “A prazo, é a receita para um desastre regional.”
Não se trata só da “guerra das imagens” que Israel insiste em menosprezar, por mais que judeus da Diáspora o avisem. “Pode ser mais perigoso que um fiasco militar”, disse ontem em Jerusalém o francês Bernard-Henry Levy à ministra Limor Livnat. O que está em causa não é Gaza, é subir mais um patamar na deslegitimação de Israel.
O bloqueio de Gaza fracassou. Nem impede a entrada de armamento, nem enfraquece o Hamas. Depende sobretudo de o Egipto fechar a sua fronteira. O Cairo terá agora mais dificuldade em o fazer.
Ontem era manifesta a descoordenação do Governo, com Bibi Netanyahu nos EUA, forçado a cancelar o encontro com Obama, com Barak a justificar o injustificável e Benjamin Ben Eliezer (no Qatar) a reconhecer uma perda de controlo das tropas e a temer a deterioração das relações com a Turquia.
No plano diplomático, sucedem-se os desaires. Os EUA não puderam evitar que na declaração da Conferência do Tratado de Não Proliferação o nome de Israel fosse referido, ao contrário do do Irão. Um mês antes, Bibi cometeu outra proeza. Convidado por Obama a participar na Cimeira de Washington sobre segurança nuclear, que visava isolar o Irão, recusou o convite para não ser confrontado com a sua política de colonização.
A razão deste masoquismo diplomático vai muito para lá de Bibi: se, como dizem os americanos, “toda a política é local”, é preciso manter fora dela os interesses estratégicos. Israel inverteu o princípio: os pequenos compromissos das coligações domésticas sobrepõem-se a todos os outros interesses.
O incidente de ontem tem uma dimensão perigosa. No domingo, o colunista Nahum Barnea, no “Yedioth”, avisou o Governo sobre a flotilha. Era elevadíssimo o risco de choque com a Turquia: “Não são relações públicas, é um problema estratégico.”
As relações entre os dois países estão tensas depois da viagem de Erdogan e Lula a Teerão. Mas a decisão de Barak e Bibi pode ter enterrado a longa “relação especial” de Israel com a Turquia, país que desempenha um papel cada vez mais influente na região e lhe servia de contraponto aos árabes.
Ancara foi conivente no envio da flotilha, calculando que os efeitos não seriam dramáticos. Convinha-lhe forçar a mão a Israel em Gaza. Erdogan subestimou os riscos da operação. Resta-lhe agora a escalada retórica, com o risco de perder o controlo sobre a sua própria “rua”, o que lhe retira liberdade e é perigoso.
Há uma vítima colateral: Obama. Não só recebe mais uma crise nos braços como vê ameaçado o plano de redução de tropas no Iraque, onde precisa que a influência turca preencha o vazio deixado pelos EUA.
Todos perderam, só o Hamas ganhou a aposta.