Crónica da Rabolhagem: Entre a Miséria e o Vinho de Pacote
No coração de um bairro de lata, onde as barracas são feitas de zinco enferrujado e sonhos molhados em vinho de pacote, habita o rabolho, uma criatura distinta, facilmente identificável pelas suas nódoas de tinto na camisola do Panelas e pelo bafo capaz de fazer desmaiar um boi. Desempregado por vocação, beneficiário do subsídio por especialização, passa os dias entre o café da esquina e a sua humilde habitação, que por dentro cheira a sovaco de burro morto e por fora parece um depósito ilegal de eletrodomésticos roubados.
O rabolho não se destaca pelo seu intelecto, aliás, se pensasse mais um bocado, entrava em curto-circuito. A sua rotina é simples e eficiente: acorda ao meio-dia, cospe no chão, coça os tomates por cima dos calções de acetato e sai para o café, onde encontra outros exemplares da sua espécie, todos igualmente desdentados e cheios de remelas. Entre uma bisca e um gole de vinho barato, disfarça a vida de merda que leva com conversas sobre o roubo que foi aquele penálti contra o Panelas.
O almoço é um ritual: uma sandes de esferovite (pão rançoso com fiambre já a suar), regada com um pacote de vinho de supermercado que custa menos que um maço de tabaco. A mulher, a pobre coitada, quando não está a vender o rabo atrás do mercado municipal, está em casa, de chinelo na mão, pronta para lhe acertar se ele chegar bêbado e sem dinheiro. Mas o rabolho é rijo, aguenta tudo, até mesmo as cacetadas na mona, porque sabe que no fim do dia é ele quem manda naquela vaca – e se for preciso, leva-lhe um sopapo para ela aprender a não bufar.
A rabolha, essa santa mártir da miséria, divide-se entre os filhos que mal sabe contar, o marido bêbado e as noites de trabalho duvidoso. Com um perfume a Couto misturado com suor seco, caminha pelas ruas de mini-saia, a mostrar mais celulite do que o pavimento do bairro. E o pior é que ainda volta para casa toda sorridente, com uns trocos no soutien, para pagar mais vinho ao rabolho-mor, que está plantado no sofá a ver o Preço Certo enquanto coça a pança peluda.
E quando a noite cai sobre o bairro, as barracas iluminam-se com a luz intermitente de uma televisão roubada, sintonizada na CMTV, onde se discute acesamente como o Panelas vai ser campeão outra vez, apesar de ser tudo contra eles. Entre um arroto e um peido mal medido que resulta num acidente fecal, o rabolho ajeita os calções, dá um pontapé no puto que chora por comida e encosta-se à parede húmida da barraca, satisfeito com mais um dia de gloriosa inércia e degradação.
E assim segue a rabolhagem, geração após geração, perpetuando o ciclo sagrado do vinho, da miséria e da burrice.