Um pouco de História...

Jornal Sporting 31/08/88

José do Carmo Francisco é ainda hoje um colaborador do Jornal Sporting. Nesta edição escreveu um artigo intitulado “Questão de vida ou de morte”. Por ser um texto de interesse histórico, transcrevo-o na íntegra:

“O futebol, aquilo a que cada um de nós chama «futebol», é uma realidade múltipla que tem (no caso do Sporting Clube de Portugal) oitenta e dois anos. Muito tempo na vida de uma pessoa – pouco tempo na vida da Humanidade ou até do País que somos há oito séculos. A minha paixão clubística leva-me a procurar saber sempre cada vez mais sobre a história e a vida do Sporting. Aos fins de tarde, sempre que posso, procuro livros antigos, revistas, jornais, recordações, nas lojas da zona onde vivo. Tal recolha tem proporcionado o desfazer de algumas dúvidas ou mesmo o esclarecimento de coisas escondidas pela poeira do passado. Pelos postais antigos pude afinal descobrir uma verdade que desconhecia sobre o equipamento do Sporting. De 1907 a 1912 foi todo branco; em 1912 aparece a camisola metade verde metade branca, a chamada camisola bipartida. Durante anos houve o problema de o tecido verde desbotar; chegou a usar-se pano de bilhar (!) que além de muito quente era também muito caro. Só em 1928, na viagem ao Brasil, foram estreadas as hoje clássicas camisolas verde e brancas de riscas horizontais…

Outra questão que acabei por deslindar com argumentos e dados concretos foi a «história», tantas vezes repetida, de que o Sporting era um clube de elite ao contrário do Benfica que seria (segundo essas vozes) um clube «popular». Ora a verdade é que o Sporting nasceu de uma cisão no Campo Grande Futebol Clube e, com a ajuda do Visconde de Alvalade, pôde contar à partida com instalações desportivas muito boas para a época: Sede, um campo de futebol, dois campos de ténis, um campo de cricket e ainda um pavilhão onde os desportistas podiam tomar uma breve refeição após o treino. O Sporting tinha em 1908, 90 sócios que pagavam uma quota de 500 réis.

Mas também é verdade que o Benfica (ao tempo era só o Sport Lisboa) nasceu em 1904 e teve como primeira «sede» a Farmácia Franco em Belém que pertencia a Pedro Franco e a seu irmão, o Conde do Restelo. Nessa famosa farmácia se reuniam os entusiastas do futebol desse tempo, alguns deles alunos da Casa Pia, lamentando o estado em que os cavalos do Regimento de Cavalaria 7 deixavam as terras do Desembargador, o «seu» campo de jogos… Como se vê, no impulso inicial do arranque, ambos os clubes (Sporting e Benfica) tiveram ligações à aristocracia: o Sporting pelo Visconde de Alvalade; o Benfica pelo Conde do Restelo.

A propósito dessa ligação (óbvia e indesmentível como todas as verdades) não deixa de ser curioso e até comovente «decifrar» uma fotografia datada de 1928 e tirada na ilha da Madeira, a caminho do Brasil. São três os jogadores do Sporting: António Penafiel, Cipriano dos Santos e Jorge Vieira. À esquerda António Penafiel, defesa direito, aplicado e sempre modesto jogador. Tão modesto e simples que só depois da sua morte os companheiros de equipa souberam pela notícia necrológica que se tratava, afinal, dum aristocrata – Marquês de Penafiel. Em tantos jogos e em tantas viagens nunca o disse a ninguém, nem ao capitão de equipa, Jorge Vieira. Ao centro Cipriano dos Santos, guarda redes, ao tempo marinheiro da Armada, nascido de uma família humilde em Almada, no ano de 1901. Dele diziam as crónicas em 1925 que era «um modelo dos futuros homens do desporto» pois «não inchou com os aplausos, ao revés de tantos outros…». Estes aplausos que o cronista Ruy da Cunha refere dizem respeito ao facto de este guarda redes ter passado num ápice da quarta para a primeira categoria do Sporting. À direita Jorge Vieira, símbolo inestimável do Sporting, modelo para as novas gerações, um dos melhores jogadores do mundo na sua época, inesquecível capitão da equipa do Sporting e da Selecção Nacional nos grandes jogos de Amsterdam, Brasil, Espanha, França, Itália, no tempo em que as viagens eram feitas de comboio ou de barco.

Se se quiser encontrar uma chave para definir o Sporting – ela está toda nesta fotografia: a modesta presença dum aristocrata, a orgulhosa participação dum marinheiro lado a lado com o homem que, com nove anos de idade, assistiu ao primeiro Sporting-Benfica.”