Como não sabia se havia de colocar este post no tópico do jogo com a Roma ou no tópico “A imagem do Sporting no estrangeiro”, decidi criar um tópico à parte, até porque se trata de um assunto que merece uma boa reflexão por parte de todos nós e merece, por si só, especial atenção.
Quase se podia fundir o tópico “A imagem do Sporting no estrangeiro” com o tópico do jogo da Roma tal é o espaço que se continua a dar às teorias do azar, do infortúnio, dos desígnios divinos, enfim, do discurso cada vez mais miserabilista dos que já acham “normal” a triste realidade que vivemos, como se sem isso o Sporting ficasse mais descaracterizado. Mude-se então o lema “Esforço, Dedicação, Devoção e Glória” para “Esforço, Dedicação, Devoção e Nicles” e substitua-se a Marcha do Sporting da Maria José Valério por um triste fadinho da Amália.
Até compreendo que haja quem durma melhor à noite se repetir dezenas de vezes para si próprio que sim, que fizemos tudo o que estava ao nosso alcance e que se o sucesso não se concretizou foi apenas porque um qualquer desígnio que transcende a vontade humana não deixou. São filosofias de vida, tão legítimas como qualquer outra e que admito e respeito. O que me causa impressão é que as pessoas não só tenham essa filosofia de vida e repitam essa ideia para si próprias, como sintam a necessidade de a apregoar aos 4 ventos e contagiar todos à sua volta com essa mesma postura. Causa-me impressão, não por discordar dessa postura, mas simplesmente pelo efeito perverso que a repetição incessante dessa ideia pode ter, neste caso num clube de futebol.
Quando alguém se quer referir ao (in)sucesso desportivo deste clube hoje em dia, já é um lugar comum usar as expressões “morrer na praia” e “maldito azar”, ou, de forma menos séria “campeões do quase” e “o clube com maior número de troféus do 2º lugar”. Constato assim que o sofrimento, que se tornou apanágio dos adeptos sportinguistas e do próprio clube após aquela travessia no deserto de 18 anos, não se esgotou aí, tendo sido esse período apenas o tempo que demorou a forjar uma mentalidade que veio para ficar e transfigurou (irremediavelmente, diria eu) o significado do Sporting hoje em dia.Lendo e ouvindo aquilo que se vai comentando, verifico que o Sporting adquiriu o estatuto de perdedor de estimação, não só para a comunicação social, sempre sedenta de histórias caricatas e de tradições para relatar, como também para os nossos rivais/adversários e, horrivelmente, para os nossos próprios adeptos, que, ironicamente, acabam por se substituir aos anteriores no cultivo desta imagem de desgraçados, de coitadinhos, de condenados a tristes fatalidades, fruto de um azar que, afinal ninguém sabe explicar de onde vem.
Já nem falo da estátua da Nossa Senhora de Fátima no balneário, que está lá muito bem, se for garante de que os jogadores crentes entrem em campo imbuídos de fé e animados de uma força e combatividade adicionais. Mas…de que valerá aos jogadores correrem e suarem durante a semana, treinarem e aperfeiçoarem a técnica e a táctica, treinarem as bolas paradas, estudarem as jogadas e os adversários, se no final do jogo tudo pode ser resolvido num golpe de sorte? Para quê dar 100%, aproveitar todos os minutos de treino e pensar em todos os factores possíveis e imaginários que podem ter peso no resultado de um jogo de futebol, se carregamos uma aura de infelicidade e insucesso? Para quê mover montanhas, fazer engenharia financeira, procurar, até ao mais ínfimo pormenor, os jogadores que melhor podem servir a equipa, se o azar pode bater à porta e arrumá-los com uma rotura de ligamentos?
Se as coisas correrem mal, todos vão dormir tranquilos: os jogadores, os treinadores, os administradores e os adeptos. Porque afinal havia um desígnio superior à sua vontade e ao seu empenho. E nunca haverá nada para melhorar, nunca haverá nada para aprender, porque tudo foi pensado, tudo foi trabalhado, suou-se até à última gota, mas o azar não deixou que os objectivos fossem atingidos. Como se já não bastassem os árbitros, o sistema, a falta de ventilação do estádio e os alegados oligarcas incompetentes que se instalaram no seio do clube, gera-se assim mais um factor a contribuir para não se dar o melhor, para lavar as mãos da responsabilidade, para maldizer e para justificar as derrotas e os insucessos. O pior é que esse factor adicional é algo abstracto, com que não podemos lutar, pela simples razão de que…não existe. E os verdadeiros responsáveis vão agradecer.
Azar? Eu já vi demasiadas derrotas do Sporting no último minuto ou no último jogo para ainda acreditar em azar. Já vi jogadores a terem demasiadas lesões para acreditar no seu azar. Azar na verdadeira acepção da palavra seria, por exemplo, se um pombo chocasse com a bola, desviando-a no momento em que esta se dirige para a baliza; ou se um parafuso do Vaivém Discovery caísse em cima da cabeça dum jogador nosso. E mesmo assim, ainda gostaria de averiguar se o Pinto da Costa pertence a alguma Sociedade Columbófila ou é accionista da NASA.
Mas para ilustrar como esta Teoria do Azar é falacciosa e perversa, dou-vos o seguinte exemplo: se um jogador, no decorrer dum jogo fizer 3 remates ao poste, ouve-se um bruá imenso no estádio, deita-se as mãos à cabeça e logo a seguir bate-se palmas e puxa-se pela equipa, e no dia seguinte a imprensa vai dizer que a sorte não esteve com o jogador e que um eventual empate ou derrota foi injusto. Mas se um jogador falha 3 passes para um colega e daí resultam contra-ataques perigosos, de imediato ouve-se um burburinho, seguido de vaias, assobios e pedidos de substituição, e no dia seguinte a imprensa vai dizer que um eventual empate ou derrota foram o produto de erros próprios. Ou seja temos uma diferença diametralmente oposta de atitudes perante 2 situações que, apesar de diferentes, têm substancialmente a mesma causa: falta de precisão centimétrica para colocar a bola num determinado ponto do campo. Mas vá-se lá saber porquê, num caso é obra divina, no outro caso é obra da incompetência do jogador.
Ainda sobre “azar” no futebol, também é curioso pensar no seguinte: se um jogador é constantemente flagelado por lesões (como por exemplo Carlos Martins), imediatamente o jogador recebe o epíteto de azarado e só lá para a 13ª lesão é que se começa a suspeitar que se calhar há algo mais além do azar. Mas até aí é sempre fruto do azar, são “coisas da vida”, “só acontecem a quem lá anda”, “e todos passam por elas”. Até aí nunca se vêm referências à susceptibilidade diferencial a lesões dos diferentes jogadores, como se todos tivessem a mesma estrutura anatómica e fisiológica; até aí nunca se questiona se os médicos, fisioterapeutas e o próprio jogador estão a fazer tudo para que a recuperação seja total e a susceptibilidade a lesões seja diminuída. Já se um jogador como Moutinho tem a ficha clínica praticamente limpa e nunca falhou um jogo por lesão, nunca se vêm referências à “grande sorte” do jogador, apesar de, no caso particular do jovem leão, ele ser um autêntico todo o terreno em campo e ser recorrentemente o jogador mais castigado pela brutalidade do adversário. Novamente, 2 tipos de situação subjacentes à mesma lógica, e 2 tipos de análise diferente (num caso há azar, no outro não há falta dele).
Se as derrotas amargas e a infelicidade eterna fossem a sina inevitável dos sportinguistas, então uma das maiores alegrias que tivemos nos últimos anos, com aquele golo de Garcia em Alkmaar nunca teria sido obtida da maneira que foi. E que visão tão cruel e pessimista essa, a de que há um qualquer superior que nos deixa sofrer 120 minutos daquela maneira, para no último minuto nos dar a maior alegria dos últimos anos e um dos maiores gritos de golo de sempre, tudo para, semanas depois sofrermos a humilhação da derrota na própria casa numa final europeia.
São só algumas ideias. Obviamente que não me acho detentor da razão absoluta, mas fico muito aliviado, quando, por exemplo no tópico do jogo com a Roma haja quem comece por atribuir as culpas do empate ao azar, para no dia a seguir já aligeirar o discurso e concordar que houve algo mais (mais do mesmo, o mesmo de sempre, diga-se) do que azar na maneira como a equipa deixou que a Roma carregasse e chegasse ao golo. Mas sobretudo fico aliviado por, no seguimento desse aligeirar do discurso do azar, se reconhecer que esse discurso repetitivo dos deuses e da sina sportinguista é como um vírus que contagia todos os que o rodeiam e alastra sem cessar até se converter num modus vivendi. E é pela perversidade dos efeitos dessa modus vivendi, pela fútil e contraproducente entrega a sentimentos de auto-comiseração, pelo crescimento da cultura da desresponsabilização, que se deve combater o alastrar desse vírus. É por isso que, acredite-se ou não no azar, acho necessário eliminar essa palavra do vocabulário leonino quanto antes, pelo papel didáctico que isso pode ter no crescimento do Sporting enquanto instituição, enquanto massa de adeptos, enquanto equipa. Mesmo que se acredite no azar e numa sina, não os usemos como desculpa, antes como algo que só permita que os jogadores, os treinadores e os próprios adeptos se transcendam a si próprios, de modo a que no fim possam dizer, de forma absoluta e objectiva: sim, fizemos tudo o que estava ao nosso alcance, sim demos mais de 100%. Um dia teremos a recompensa.