Para quem não sabe, esta semana comemora-se em Ponta Delgada as Festas da Devoção ao Senhor Santo Cristo dos Milagres, a 2ª maior festa religiosa do país, só suplantada pela de Fátima.
O culto à imagem do Santo Cristo está impregnado na cultura açoreana.
Uma “pequena” história.
A Origem da Imagem
No Convento da Caloura, em Água de Pau, começa a história do culto do Senhor Santo Cristo dos Milagres, em S. Miguel. Reza a tradição que foi neste lugar que se erigiu o primeiro Convento de Religiosas nesta Ilha, convento cuja fundação se deveu, principalmente, à piedade das filhas de Jorge da Mota, de Vila Franca do Campo.
Mas para que tal comunidade fosse estabelecida como devia, foi necessário que alguém fosse a Roma impetrar a respectiva Bula Apostólica. Largaram, por isso, de S. Miguel a caminho da Cidade Eterna, duas religiosas. Aí solicitaram ao Papa o desejado documento. Tão bem se desempenharam dessa missão que o Sumo Pontífice não só lhes passou a ambicionada Bula como ainda lhes ofereceu uma Imagem do Ecce Homo. De regresso a Vale de Cabaços, a singular imagem foi posta num nicho onde se conservou por poucos anos.
Porque o lugar era ermo e muito exposto às incursões dos piratas, o pequeno Mosteiro ficou, certo dia, deserto, pois parte das religiosas seguiu para Santo André, de Vila Franca do Campo, e a outra parte se encaminhou para Ponta Delgada, para o Mosteiro da Esperança, acabado de fundar pela viúva do Capitão Donatário, Rui Gonçalves da Câmara.
Mas a Imagem do Senhor Santo Cristo não ficou esquecida em Vale de Cabaços, porque a religiosa galega Madre Inês de Santa Iria a quis trazer para Ponta Delgada.
A primeira procissão
No ano de 1700, a Ilha de S. Miguel foi abalada por fortes e repetidos tremores de terra. Duravam estes já vários dias quando a Mesa da Misericórdia e grande parte da nobreza da cidade, vendo que os terramotos não cessavam, resolveram ir à portaria do Mosteiro da Esperança para levarem em procissão a Imagem do Santo Cristo.
Ao princípio da tarde desse dia 13 de Abril de 1700, juntaram-se as confrarias e comunidades religiosas. Concorreu igualmente toda a nobreza e inumerável multidão que, com viva fé, confiava se aplacaria a indignação divina com vista da santa Imagem.
Caminhava já a procissão em que todos iam descalços; e logo que a veneranda Imagem se deixou ver na portaria, foi tão grande a comoção em todos que a traduziram em lágrimas e suspiros, testemunhos irrefragáveis da contrição dos corações.
Levaram o andor do Santo Cristo as pessoas mais qualificadas em nobreza. Andando a procissão, ia a veneranda Imagem entrando em todas as igrejas onde, em bem concertados coros, Lhe cantavam os salmos “Miserere mei Deus”.
Saindo da Igreja dos Jesuítas, e caminhando para a das Religiosas de Santo André, não obstante toda a boa segurança e a cautela com que levavam a santa Imagem, com assombro e admiração de todos, caiu esta fora do andor e deu em terra. Foi esta queda misteriosa, porque não caiu a Imagem por algum dos lados do andor, como era natural, senão pela parte superior do docel.
O povo ficou aflito com sucesso tão estranho. Uns feriam os peitos com as pedras; outros, pondo a boca em terra, que julgavam santificada com o contacto da santa Imagem, pediam a Deus misericórdia; estes, tomando os instrumentos de penitência, davam sobre si rijos e desapiedados golpes, regando a terra com o sangue das veias; aqueles publicavam em alta voz as suas culpas, como causas da indignação do Senhor; e todos, com clamores e enternecidos suspiros, pediam a Deus que suspendesse as demonstrações da sua justa vingança.
Verificaram, então, que a santa Imagem não experimentara com a queda dano considerável, pois somente se observou no braço direito uma contusão. A Imagem foi lavada e limpa no Convento de Santo André e, colocada outra vez no andor com a maior segurança, continuou a procissão, na qual as lágrimas e soluços do povo aflito embargavam as preces, até que, bem de noite, se recolheu no Mosteiro da Esperança.
Madre Teresa Anunciada
Madre Teresa da Anunciada nasceu e foi baptizada no dia 25 de Novembro de 1658, na freguesia de São Pedro da então vila da Ribeira Grande. Entrou para o Convento da Esperança onde iniciou o seu noviciado, em 19 de Novembro de 1681, vindo a fazer os votos solenes em 23 de Julho de 1683. Morreu, com fama de santidade, em 16 de Maio de 1738.
O prelado da Diocese de Angra deu início ao processo jurídico sobre a Vida e Virtudes de Madre Teresa, em 5 de Maio de 1738; nesse mesmo ano, em 6 de Agosto, o Provincial dos Franciscanos nos Açores deu início ao processo jurídico da Vida e Virtudes de Madre Teresa, feito pela Ordem de São Francisco.
Há poucos anos, circulou, entre a população açoriana, um abaixo-assinado, dirigido ao Santo Padre, do seguinte teor:
[center][i]"O povo dos Açores tem um grande amor e devoção ao Senhor Santo Cristo dos Milagres. Amor e devoção que ultrapassaram em muito as fronteiras da Região, porquanto em todos os países da diáspora açoriana se celebram festas em honra do Senhor Santo Cristo e são muitos milhares os que, de quase todo o mundo, se deslocam todos os anos em peregrinação de súplica ou acção de graças ao Senhor.
Tudo começou com uma Religiosa Clarissa, Madre Teresa da Anunciada que, no silêncio do convento, recebeu um apelo especial para honrar e desagravar o Senhor na Sua Flagelação representado na Imagem do Ecce Homo.
A partir, sobretudo de 1700, o culto ao Senhor Santo Cristo dos Milagres tomou tal grandeza que, desde então, nunca mais esfriou. As graças e os milagres têm sido uma constante. Madre Teresa da Anunciada foi um instrumento para ajudar a recordar aos homens que Deus é solidário com o Seu povo.
Monja de vida austera e intrépida na sua fé, pela oração intensa, pelo seu amor a Jesus e à Eucaristia e pela sua devoção a Maria Santíssima, é tida como modelo de santidade e considerada a grande intercessora junto do Senhor que tanto amou.
Por isso, junto a minha voz à de muitos sacerdotes e fiéis, implorando a Vossa Santidade seja concedido o “nihil obstat” para a organização do Processo de Beatificação da Serva de Deus a fim de ser elevada à honra dos altares, assim o espero". [/i] [/center]
O Reitor do Santuário da Esperança, Monsenhor Agostinho Tavares, já anunciou que vai solicitar a intervenção junto da Santa Sé do novo Bispo dos Açores, D. António Braga, no sentido da beatificação de Madre Teresa da Anunciada.
Os restos mortais de Madre Teresa conservam-se numa pequena urna que se guarda na Capela do Senhor Santo Cristo, no Mosteiro da Esperança.
Em fins do século passado, ou começos deste século, um dos bispos de Angra mandou abrir a caixa, que ainda hoje se conserva no coro baixo do Convento da Esperança e que contém os despojos mortais de Madre Teresa da Anunciada.
Removida que foi a respectiva cobertura, logo se evolou um magnífico e inexplicável aroma. Poderá alguém, mais exigente, não querer aceitar o facto. O certo é, porém, que da vida da Madre Teresa se evola um perfume que resiste a todas as inconsequências dos homens, a todos os desvios de alguns devotos, certamente sinceros, mas pouco esclarecidos.
O pai de Teresa de Jesus (mais tarde, Teresa da Anunciada) foi Jerónimo Ledo de Paiva, nascido na Ribeira Seca da Ribeira Grande, em Julho de 1601. A mãe foi Maria do Rego Quintanilha, baptizada na paroquial de S. Jorge, da Vila do Nordeste, em 11 de Agosto de 1614. A prolongada doença de Jerónimo Ledo de Paiva, que acabou por vitimá-lo, numa sexta-feira, 24 de Janeiro de 1666, foi a grande desgraça que se abateu sobre esta família, de treze filhos, sendo Teresa a mais nova. Foi sua irmã, Joana de Santo António, que fez os impossíveis até conseguir que Teresa de Jesus entrasse no Convento de Nossa Senhora da Esperança.
Quando Teresa chegou à idade de aprender a ler, sucedeu que veio por essa ocasião do Brasil seu irmão, Frei Simão do Rosário, para descansar alguns meses e restabelecer-se das extenuantes missões pelo sertão brasileiro. Ensinou a ler as irmãs mais moças e Teresa deliciava-se com a leitura da vida de santos, em especial as “Meditações de Santa Brígida”.
Quando chegou o dia da profissão de Teresa, a procissão de ingresso que se organizou com luzido acompanhamento, saiu da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, do Convento dos Franciscanos, para a de Nossa Senhora da Esperança. Sobressaía a figura de Teresa de Jesus que, nesse momento, já estava crismada com o nome que a devia celebrizar - Teresa da Anunciada.
A família, os convidados e o conjunto musical, acompanhados de alegre repicar de sinos das torres de várias igrejas circunvizinhas, festejavam este acontecimento.
Quando Teresa entrou para o Mosteiro da Esperança, estava no coro baixo, a um lado, num pequeno altar, uma imagem do Senhor, no passo do “Ecce Homo”, que tinha um registo a tapar a abertura do peito, pois outrora servira de sacrário. A pedido de sua irmã, Joana de Santo António, Teresa conseguiu um novo altar para a Imagem que foi a encarnar. Pediu a Madre Jerónima do Sacramento, do Convento de Santo André, de Ponta Delgada, que fizesse uma cana de flores de seda, para ornar o Senhor quando regressasse ao seu novo altar.
A Imagem do Senhor Santo Cristo estava no seu novo altar, mas o tecto do coro era formado pelo soalho do coro alto que, além de velho, tinha muitas frinchas que deixavam passar o pó, além do barulho que se sentia quando se andava no coro alto. Teresa conseguiu que fosse construída uma capela e, a seu pedido, D. Pedro II, por alvará de 2 de Setembro de 1700, concedeu uma tença de doze mil réis, para manter acesa, dia e noite, uma lâmpada de azeite diante do altar do Senhor Santo Cristo.
Nenhuma dessas capelas chegou aos nossos dias, mas, sim, uma terceira, mandada construir posteriormente e que foi benzida a 22 de Março de 1771. Foi por esta época que Madre Teresa da Anunciada desejou que a Imagem do Senhor saísse em procissão, passando por todas as igrejas e conventos da cidade. Por intermédio do Conde da Ribeira Grande, obteve licença do Prelado, D. Frei António de Pádua, e a primeira procissão do Senhor Santo Cristo realizou-se a 11 de Abril de 1700, segundo o investigador Urbano de Mendonça Dias. (O investigador mais recente Luciano Mota Vieira invocou pesquisas que fazem recuar para 1698 a primeira procissão. O cortejo repetiu-se em Abril de 1700 e foi esta data que, durante muito tempo, foi apontada como sendo a da primeira procissão).
A devoção que esta procissão despertou foi tal que nunca mais deixou de se realizar, salvo uma ou outra vez, por efeito de mau tempo. É a maior devoção que se realiza em terras portuguesas.
Madre Teresa parece que não teve velhice, tal a energia que manteve até ao fim da vida. A última doença prostrou-a aceleradamente. Os jejuns, os cilícios, as penitências e uma cama feita com uma enxerga de palha sobre ramos, parece que nunca lhe tiraram as forças do corpo e lhe fortificaram as da alma. A doença que a vitimou não foi longa. Pressentiu a morte que chegou ao amanhecer de sexta-feira, dia 16 de Maio de 1738. Teresa ia completar, em Novembro seguinte, 80 anos de idade. A devoção que Teresa da Anunciada tão intensamente sentiu por Cristo no passo do “Ecce Homo” foi dando, através dos séculos, novas ressonâncias ao culto do Senhor, a ponto de ter chegado aos nossos dias, com notável influência na espiritualidade do nosso Povo.
A 16 de Maio de 1954, foi colocada uma lápide comemorativa na casa onde nasceu a Madre Teresa, sita à Rua do Torninho, na Ribeira Seca.
A 12 de Maio de 1963, foi inaugurado, junto à igreja da Ribeira Seca, um busto da Madre Teresa, da autoria do escultor Numídico Bessone.
Em Dezembro de 1992, Madre Teresa da Anunciada foi oficialmente designada Patrona da escola n° 5 da Ribeira Seca.
A grande estátua da Madre Teresa, junto ao Santuário do Santo Cristo, em Ponta Delgada, foi inaugurada em 26 de Maio de 1984.
O Mosteiro da Esperança
O Mosteiro de Nossa Senhora da Esperança foi o primeiro Convento de Freiras que se erigiu em Ponta Delgada. A sua construção foi iniciada em vida do seu fundador, o Capitão Donatário Rui Gonçalves da Câmara (Rui II) que, depois do terramoto de 20 de Outubro de 1522, que arrasou Vila Franca do Campo, passou a residir em Ponta Delgada que já era vila desde 1499.
Sua mulher, D. Filipa Coutinho coadjuvada por vários fidalgos, conseguiu concluir as obras, interrompidas ao tempo da morte do fundador ocorrida em 20 de Outubro de 1535. Foi em 23 de Abril de 1540 que as freiras deixaram o convento da Caloura, trazendo a Imagem do Senhor Santo Cristo, e vieram habitar o Mosteiro da Esperança.
Na segunda metade do século XVII, o Convento da Esperança começou a beneficiar de grandes melhoramentos: os célebres azulejos que ainda hoje se encontram no coro baixo, são da autoria de António de Oliveira Bernardes; a talha da capela do coro baixo é atribuída a Miguel Romeiro que, em sonhos, a ideara; a decoração do tecto da igreja e da primitiva talha da capela-mor e dos altares laterais foi realizada, em 1658, pelo pintor micaelense Manuel Pinheiro Moreira, irmão da Ordem Terceira de S. Francisco, em Ponta Delgada, e professor de pintura de suas próprias filhas.
No ano de 1723, havia na Esperança 102 freiras e 57 noviças, pupilas e servas. Em 1821, a população do mosteiro era de 108 senhoras - 42 freiras professas, 36 seculares sem dispensa e 30 fâmulas. Em 1865, havia 72 senhoras, sendo 9 religiosas da Esperança, 11 do Convento da Conceição, uma do convento de S. João, uma do convento do Bom Jesus da Ribeira Grande, uma do convento de Santo André de Vila Franca, 16 meninas que serviam no coro, uma secular, duas senhoras que não faziam serviço, vinte e uma servas da comunidade e onze servas particulares.
As Religiosas de Maria Imaculada foram o quarto instituto a ocupar o Convento da Esperança. A última religiosa clarissa, a Madre Abadessa Maria Vicência Cabral, faleceu em Dezembro de 1894. Já então havia recolhidas que vestiam hábito e continuavam os usos conventuais, não obstante os reparos da imprensa periódica, ainda presa aos decretos anti monásticos de Maio de 1832.
Com o Bispo D. António Meireles, na terceira década do presente século, vieram as Visitandinas, a que sucedeu a Congregação de São José de Cluny. Constituído o seu colégio, conforme risco do arquitecto micaelense João Rebelo, na Rua Agostinho Pacheco, coube às Religiosas de Maria imaculada ocupar o Convento, em cuja recuperação trabalharam como operárias.
Tinham as Clunicenses confiado à Madre Maria do Carmo o cuidado da Capela do Santo Cristo, dizendo a sua superiora que ninguém melhor do que uma açoriana saberia ocupar-se daquele recinto. A Madre Maria do Carmo era micaelense, sobrinha de Mariano Victor Cabral, notável redactor do “Diário dos Açores”.
As religiosas de Maria Imaculada, que ocupam, actualmente, o lugar das antigas Clarissas, ali presentes de 1541 a 1894, têm sido extremamente atentas ao significado espiritual do Convento e têm dado aos reitores do Santuário uma excelente cooperação.
Em Abril de 1959, o então Bispo de Angra, D. Manuel Afonso de Carvalho, declarou Santuário Diocesano a Igreja do Santo Cristo.
Eis um extracto desse decreto episcopal:
[center][i]"Dom Manuel Afonso de Carvalho, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica Bispo de Angra e Ilhas dos Açores:
(…) Para que este culto de Jesus Cristo Rei não esmoreça e a Paixão do Senhor absorva plenamente as almas, sem que surja qualquer vislumbre de prática ou acto menos conforme com o espírito e orientação da Santa Igreja, havemos por bem:
-
Declarar a Igreja do Santo Cristo dos Milagres Santuário Diocesano e confiar a sua administração a um sacerdote especialmente designado por Nós;
-
Recomendar a todos os reverendos Párocos e Sacerdotes que incutem nos fiéis o verdadeiro espírito de piedade e fervor para com o Santo Cristo, prevenindo-os dos perigos por ocasião da festa anual, a fim de que todas as suas acções sejam para a maior glória do Senhor;
-
Exortar todos os Açorianos, de qualquer categoria que sejam, a que, nas horas de tribulação como nas de bonança, invoquem, com verdadeiro espírito de fé, o Senhor Santo Cristo e Lhe peçam que lhes conserve a pureza do coração, a resignação nos infortúnios e, dum modo especial, a graça para levaram uma vida conforme com a vontade do mesmo Senhor, a fim de um dia O poderem aclamar no seu Reino de glória.
Dado em Angra e Paço Episcopal, aos 22 de Abril de 1959." [/i] [/center]
O Campo de São Francisco
No Convento da Esperança foi edificado, na primeira metade do século XVI, por iniciativa de Filipa Coutinho, viúva do Capitão Donatário Rui Gonçalves da Câmara.
Os terrenos necessários para a Igreja e para a cerca haviam sido doados por Fernando Quental e sua mulher, Margarida de Matos.
A linha nascente do Campo de S. Francisco, já na segunda metade do século XVI, teve a orientação actual, porque Cristóvão de Matos Quental, descendente do dito Fernando de Quental, mandara construir, por volta de 1609, nas suas casas, daquele lado, a ermida de Nossa Senhora da Ressurreição, também conhecida por Senhora da Soledade.
No lado poente, no início do século XVI, já havia uma ermida de Nossa Senhora da Conceição, pertencente à Câmara Municipal. No local dessa ermida, foi erguido o primeiro convento de franciscanos, como se lê na “Crónica da Província de S. João Evangelista”, de Frei Agostinho de Mont’Alverne. As obras para o actual convento e igreja dos franciscanos começaram em 1709. A parte do convento estendia-se para o lado sul, com um adro mais alto do que a rua.
Com a extinção das ordens religiosas, foi instalado nesta parte sul, o hospital da Santa Casa da Misericórdia, em 1834.
O Campo de São Francisco foi, em tempos antigos, teatro de grandes festas. No final do século XVIII, quando ali já existiam as casas da Família Marques Moreira, então pertencentes ao Dr. António Francisco de Carvalho, realizaram-se grandes festejos para comemorar o nascimento de uma princesa, filha de D. João VI.
Houve, então, um “brinco militar” - paródia guerreira - e um “brinco de touros” e uma “encamisada” - cavalgada de 200 homens, vindos de S. Roque.
A parte sul do campo era limitada, em parte, pelo Castelo de S. Brás e, em parte, por casas cujas traseiras davam para o Corpo Santo.
O aspecto do Campo de S. Francisco mais próximo do actual foi dado, por volta de 1825, pelo Governador Militar Brederode que o mandou arborizar, e colocar banquetas em redor. Até então, era o Campo do Dízimo, passando, a partir dessas obras, a ser local de recreio e de exercícios e paradas militares.
A sul do mesmo campo, havia uma fonte monumental. As armas da cidade, esculpidas em mármore e que havia na parte central dessa fonte, vieram de Lisboa e foram colocadas em fins de 1849.
Em 9 de Setembro de 1868, o Campo foi aterrado e nivelado de novo, sendo então cortado o adro do Convento dos Franciscanos, para aí ser rasgada uma rua que ligaria directamente com a praça.
Ainda em 1870, houve, no Campo de S. Francisco, uma exposição de gado. Neste mesmo ano, e na esplanada rente ao Castelo, José Lopes do Rosário (popularmente conhecido por “Rei dos Tambores”), deu ali espectáculos de circo, com macacos e ursos.
No sábado, 2 de Julho de 1870, houve, no Campo, exercícios de fogo de peça e de espingarda, pelos marinheiros da corveta “Duque de Palmela”.
Em Março de 1871, houve uma subscrição pública para alindar o Campo, iluminá-lo a petróleo e dotá-lo com um quiosque, ao centro. As obras de alinhamento começaram no mês seguinte, tendo a Câmara plantado novas árvores.
O coreto - uma construção leve, rendilhada, de madeira, imitando um pagode chinês - foi inaugurado no dia 12 de Maio de 1871. Segundo Bretão Ribeira (pseudónimo de Joaquim Maria Cabral, in “Açores”, 1951), o coreto seria da autoria de Pedro Paulo que também foi autor do edifício da Agência do Banco de Portugal, em Ponta Delgada, de que foi director. Outros afirmam que o quiosque foi projecto dos irmãos José e Ernesto do Canto.
Este belo coreto foi pasto de um incêndio, ao meio-dia de 24 de Maio de 1957. Estava já todo ornamentado e com a respectiva instalação eléctrica, pronto para as festas, quando uma roqueira, lançada perto, caiu na cúpula. O fogo propagou-se rapidamente às centenas de flores de papel de cera que revestiam completamente o coreto. Os bombeiros conseguiram salvar apenas a estrutura que, coberta apressadamente de verduras, serviu nas festas daquele ano.
O antigo coreto foi substituído, anos depois, pelo actual, uma pesada estrutura de cimento, muito longe da graciosidade, leveza e harmonia daquele que ardeu.
O primeiro carrossel que apareceu no Campo de S. Francisco, pelas Festas do Senhor, foi em 1884, e pertencia a Manuel Coelho Lourenço, da Ilha Terceira, donde o trouxera. Vendera-o a Cândido José Xavier Jr., que o vendeu, por sua vez, a João Diogo, por 60$000 réis insulanos, ficando conhecido, por isso, pelo nome de “cavalinhos de mestre João Diogo”.
A 7 de Abril de 1886, começou a demolição de parte da cerca do Convento da Esperança, para a abertura da Avenida do Coliseu, hoje denominada de Roberto Ivens. Por esse motivo, em Junho desse ano, procedeu-se à exumação de 80 cadaveres de freiras, que foram depositados no Cemitério de S. Joaquim, construído em 1846.
A 26 de Outubro de 1886, ficaram concluídas as três escadas, mandadas construir pela Câmara Municipal, em frente dos pórticos da Igreja de S. José.
O lajeamento em frente do hospital e da igreja começou a 10 de Novembro de 1886.
Na segunda-feira, 15 de Novembro de 1886, começaram as obras do actual pórtico do hospital.
O culto do Senhor Santo Cristo dos Milagres
Numa ilha de vulcões em actividade constante e de sismos frequentes, a devoção era o único refúgio do povo, através do culto do Divino Espírito Santo e ao Senhor Santo Cristo dos Milagres.
A devoção que Teresa da Anunciada, venerável religiosa do convento de Nossa Senhora da Esperança, tão intensamente sentiu por Cristo, marcou profundamente a alma do povo, de tal modo que o culto ao Senhor, através da procissão com a imagem, se expandiu e fortaleceu ao longo dos séculos.
É, hoje em dia, a maior procissão, a mais grandiosa e a de maior devoção que se realiza em terras portuguesas.
No coração de cada açoriano, disperso pelo mundo, há um altar de culto eterno ao Senhor Santo Cristo, onde as suas preces mantêm permanentemente acesas místicas velas de imperecível devoção e saudade.
Daí a presença de milhares de açorianos que vêm participar, todos os anos, de Portugal, dos Estados Unidos da América, do Canadá e, naturalmente, das outras ilhas, nas grandes festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres, numa autêntica e profunda manifestação de fé e devoção.
Semanas antes da procissão, o mosteiro da Esperança e a praça 5 de Outubro são preparados e enfeitados festivamente com milhares de lâmpadas multicores, mastros e bandeiras, flores de todas as espécies e cores que conferem ao recinto um deslumbrante ar de festa.
As festas duram vários dias. Sucedem-se os serviços religiosos e os concertos. Na tarde de sábado, há pessoas que andam à volta da praça de joelhos sobre as pedras do pavimento ou, então, carregadas de círios de cera, num agradecimento pela graça recebida do Senhor numa hora de aflição e sofrimento.
Depois, no domingo, milhares de pessoas incorporam-se na procissão. A abrir, o guião, com a coroa de espinhos dourada, depois duas longas filas de homens com opas, muitos com grossos círios votivos, outros descalços, no cumprimento de promessas, interrompidos por grupos de filarmónicas. Seguem-se associações juvenis transportando guiões de cores garridas, crianças vestidas de anjos, alunos do seminário, o clero micaelense e alguns sacerdotes convidados, todos eles a precederem a venerando imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres, transportada sob um docel de veludo e ouro, num trono de lindíssimas flores de seda e pano, tecidas no século XVIII.
Após a venerando imagem, seguem-se os dignatários da Igreja Católica, representantes das congregações religiosas sediadas em S. Miguel e muitos milhares de senhoras, no cumprimento de promessas.
A fechar o extenso cortejo, seguem-se as mais altas autoridades militares e civis, representações e associações sociais e desportivas.
A grande procissão recolhe, já quase noite, após cinco horas de circulação pelas principais ruas de Ponta Delgada.
O corpo principal do tesouro do Senhor Santo Cristo dos Milagres é constituído pelas seguintes jóias: o Resplendor, a Coroa, o Relicário, o Ceptro e as Cordas.
Frutos dos mistérios da Fé, sinais da gratidão dos mortais pelos milagres que os ajudam a caminhar pela vida, o Ex-Libris do Tesouro, o RESPLENDOR é a peça mais rica do espólio. Fotografado e documentado por especialistas internacionais em arte, foi recentemente considerado, num congresso em Valladolid, Espanha, a peça mais valiosa do seu género em toda a Península Ibérica.
O RESPLENDOR, em platina cromada de ouro, pesa 4,850 gramas e está incrustado de 6.842 pedras preciosas de todas as qualidades: topázios, rubis, ametistas, safiras, etc. Além do valor artístico, esta jóia está carregada de elementos simbólicos ligados à teologia. O primeiro é a da Santíssima Trindade, representada por um triângulo no centro que contém três caracteres com o seguinte significado: “Sou o que Sou” e também “Pai, Filho e Espírito Santo”.
Deste triângulo irradiam os resplendores para as extremidades da peça. O segundo elemento é a Redenção de Cristo, representada pelo cordeiro sobre a cruz e pelo livro dos Sete Selos do Apocalipse. Um terceiro é a Eucaristia, simbolizada por uma ave, o pelicano, pelo cálice e pelo cibório. O último elemento simbólico do RESPLENDOR é a Paixão de Cristo passando pela coroa representada em pormenor: desde a túnica ao galo da Paixão, passando pela coroa de espinhos integralmente feita de esmeraldas.
Se o Resplendor é a jóia mais rica do Tesouro, a COROA é a sua peça mais delicada. Em ouro, pesando apenas 800 gramas, possui 1.082 pedras preciosas, todas elas trabalhadas com minúcia, onde os próprios espinhos são pequeníssimas pedras que diminuem de tamanho nas extremidades.
O RELICÁRIO é, por outro lado, a peça mais enigmática do Tesouro. É a única que está permanentemente colocada no peito da imagem e serve para guardar o Santo Lenho, que se crê ser uma farpa da verdadeira cruz em que Jesus foi crucificado.
O CEPTRO, a quarta peça do Tesouro, é constituída por 2.000 pérolas que formam uma maçaroca de cana, 993 pedras preciosas ao longo do tronco e no conjunto de brilhantes com renda de ouro na base, onde está colocada a Cruz de Cristo.
Finalmente, as CORDAS, com 5,20 metros de comprimento, constituem a quinta peça do corpo principal do Tesouro. São duas voltas de pérolas e pedras preciosas enroladas em fio de ouro.
Estas jóias possuem um valor incalculável, que ainda não está devidamente avaliado. As Jóias do Senhor Santo Cristo dos Milagres, como também a colecção de capas usadas pela imagem, podem ser admiradas no Convento de Nossa Senhora da Esperança.