[size=12pt]Parte 1[/size]
Como preferes que te trate? Por tu?
Porra! Queres chamar quê, senhor? Isso não existe no meu vocabulário.
Que memórias tens da tua infância no Montijo?
Do meu grupo de amigos. Éramos uns bandidos, entre aspas. Sempre com a bola.
O que faziam além de jogar futebol?
De tudo. De meter respeito aos betinhos até roubar. A grande maioria era de famílias humildes. Alguns passavam fome, eu não. Em minha casa havia sempre comida, nem que fosse pão com açúcar ou sopinhas de leite.
Roubavas por rebeldia?
Mais pelas companhias. Não roubava para comer, mas por um chocolate talvez.
Integravas-te facilmente?
Menos nos betinhos. No Montijo havia o café dos ricos e, dividido por um beco de um metro, o café dos pobres. Eu ficava com os da minha classe social, mas tinha uma mais-valia. É que os betinhos queriam jogar à bola comigo. Dava-me bem com todos por causa do futebol
Tiveste problemas com a Polícia?
As balas passaram-me sempre ao lado. Uma vez vinha de um jogo e tinham ido todos dentro. Foram assaltar a escola do Montijo. Eu tive sempre sorte, também porque era protegido pelo grupo. Já estava no Sporting e tiravam-me sempre do filme. Muitos estiveram presos mais tarde e fui vê-los à cadeia.
Quantas pessoas viviam em tua casa?
A minha avó, o meu pai e a minha mãe no quarto e eu e o meu irmão no sofá-cama, com o penico. Não havia casa-de-banho. Mais tarde o meu pai fez a casa-de-banho e mais um quarto. Ele era um grande jogador de cartas, era o ‘Pelé da Loba’, um jogo típico aqui da zona, e num Verão ganhou dinheiro para as obras. Eu e o meu irmão passámos a ter cada um a sua cama.
O que faziam os teus pais?
A minha mãe era doméstica e o meu pai era empregado de escritório.
Davas-te bem com o teu irmão?
Sim, apesar dos oito anos de diferença.
Lembras-te de alguma zanga?
Esteve para me dar duas mocadas quando eu e outros fomos afastados da selecção. Já nos tinham avisado para não jogarmos às cartas e uma vez o [seleccionador] José Augusto afasta-me mesmo. Cartas e passas, porque também fomos apanhados a fumar. Tinha 15 ou 16 anos, o meu irmão agarrou-me pelo pescoço e levantou-me um palmo do chão.
Onde passavam as férias de Verão?
Até aos oito anos na praia do Samouco e até aos 17 no parque de campismo da Costa, sempre na tenda. Depois tornou-se impossível fazer campismo. Nos seniores do Sporting já não podia sair à rua e ali era impossível ter o mínimo de tranquilidade.
Como eras na escola?
Até à quarta classe fui um aluno normal. Quando entrei no Sporting, a escola ficou para segundo plano.
Deixaste-a com que idade?
Com 13. Parei no primeiro ano do ciclo. Chumbei por faltas em Janeiro, já era repetente e o meu pai pôs-me a trabalhar como bate-chapas. Estive até aos 15 anos, quando assinei o primeiro contrato profissional.
O que fazias na oficina?
No primeiro dia, cheguei lá e mandei a tinta toda para o fato-de-macaco novo. Ao almoço entrei em casa todo sujo. ‘Estás a ver mãe, já viste o trabalhador que sou, já viste o que fiz das nove ao meio-dia?’. E ela: ‘Ai filho, que orgulho tenho em ti’. Mas que orgulho? Tinha dado três marteladas… [risos].Foi o melhor dia de trabalho como bate-chapas… Tinha orgulho em passear o fato-de-macaco na rua e de o mostrar aos meus amigos. ‘Olha lá para isto, pá! Sou um gajo de trabalho’. Depois fui aprendendo e no fim já conseguia pôr as porradas dos carros no sítio.
Os teus pais davam-te muita liberdade?
Até aos meus 17 anos, às onze da noite tinha que estar em casa.
E cumprias?
Quando chegava mais tarde corria algum risco. O meu pai nunca me tocou na cara, no máximo deu-me uns pontapés no cu. Mas dava-me broncas. Tinha um respeito incrível por ele. A minha mãe já era diferente. De vez em quando levava forte, mas não doía. Com o meu pai bastava ele assobiar à janela para eu ir para dentro. À parte disso, teve sempre uma mentalidade aberta. Muitas vezes a minha mãe apanhou-me revistas pornográficas e ele encobria-me sempre.
Parte 2
Quando chegaste ao Sporting, com 11 anos, pagavam-te alguma coisa?
Só o passe.
Como entraste no clube?
Viram-me num torneio aos 10 anos, mas o meu pai não me deixou ir. Achava uma loucura que eu fosse sozinho para Lisboa.
Como reagiste?
Fiquei triste, mas compreendi. Ele foi muito inteligente: ‘Há ladrões, não posso ir contigo, não há dinheiro para comeres fora, vais chegar aqui às 11 e tal da noite…’. Um ano depois, Portugal fez uma selecção de sub-11 para ir jogar a França. Houve provas em todo o país e fiquei entre os 16 escolhidos. Fomos à final e fui o melhor jogador. No regresso estava o Aurélio Pereira [coordenador do sector da formação do Sporting] à minha espera no aeroporto e foi aí que convenceu o meu pai. E foi aí também que comecei a acreditar que teria futuro no futebol. Logo a seguir fiquei ainda com mais confiança: no primeiro jogo pelo Sporting, sem um único treino, fiz sete golos. Os miúdos são cruéis e ninguém te liga quando chegas, és um forasteiro. Mas isso era antes do jogo. Depois dos sete golos, já era um autêntico líder. Porque parti aquilo tudo. Passados uns meses, o Sporting deu-me 30 escudos por dia para comer um bolo e um copo de leite.
E afinal eras do Sporting ou Benfica?
O meu pai era do Sporting. Naquele tempo, e ainda hoje, era normal seres do clube do teu pai.
Também foste cruel com os miúdos que chegavam a Alvalade?
Dependia. Os que chegavam por mérito defendia-os sempre. Mas o Aurélio tinha uma pressão tremenda, com os pais ricos que queriam que os filhos fossem jogadores. E um dia veio ter comigo: ‘Paulinho, vou meter um miúdo à tua frente, rebenta-o todo’. Os pais estavam na bancada e parti o miúdo todo para perceberem que o filho não tinha jeito. A partir da primeira vez já não era o Aurélio que vinha ter comigo. Quando via um betinho ou alguma coisa esquisita, pergunta-lhe logo: ‘Como é que é, é para partir? [risos]’.
Também no balneário te davas melhor com os miúdos da tua classe social?
Não quer dizer que não te dês com o mais rico, mas parece que há um íman. É como os gajos que fumavam. Quem são os meus amigos de sempre no futebol? Os que fumavam.
Quando é que te estreaste no tabaco?
Aos 12 anos já fumava. Barco. Uma hora no Tejo. Ali comecei a brincar, a fazer bolas [argolas com o fumo] para passar o tempo, e ganhei o vício. Andava sempre com o maço de cigarros escondido nas meias. O meu pai e a minha mãe perguntavam pelo cheiro e dizia que era do barco, que vinha toda a gente a fumar.
Havia muitos miúdos na tua equipa a fumar?
Sim, os da minha classe. Se falas dos mais ricos, não. Se falas dos gajos do Barreiro, todos fumavam.
Quando assinaste o primeiro contrato profissional, em 1981, com 15 anos, quanto ganhavas?
Dez contos.
Era muito para a época?
O meu pai dava-me um conto por semana e metia seis no banco. Aquilo dava e sobrava. Comecei a comprar a minha roupa. Mas a primeira coisa que comprei foi uma aparelhagem a prestações. O meu primeiro disco foi um dos Queen. Ainda tenho essa aparelhagem em Madrid, mas não sei se toca.
Começaste a sentir algum assédio das raparigas?
Só depois de dar o meu primeiro autógrafo, quando me estreei na equipa principal, aos 16 anos. No Montijo já era impossível e aos 17, quando comecei a jogar mais no campeonato, começou o assédio em Lisboa.
Eras um adolescente. Deixaste-te deslumbrar?
Quando te dão uma caneta para assinares o primeiro autógrafo é como te darem uma pistola com cinco balas em seis buracos para jogares à roleta russa. Viste O Caçador, com o Robert de Niro? É igual. Se tens 16, nunca sabes como vais reagir, por isso de 100 há 99 que levam o tiro. Quando pegas na caneta, a primeira coisa que a maioria perde é a humildade. Há milhões de livros e nenhum fala deste tema. Nenhum professor ou psicólogo pode ensinar a lidar com isto, porque eles não dão autógrafos aos 16 anos.
Como é que tu lidaste?
Com medo e respeito. Não queria falhar às pessoas que me pediam autógrafos. Por acaso deu-me para aí. Mas quantos se perdem? No teu meio és o número um do mundo. Os bandidos dos meus amigos estão a ver-me na televisão e quem é que lhes vai dizer para terem calma. ‘Este gajo está na televisão! Este gajo é o maior!’. Com 16 anos não era nada, depois do primeiro autógrafo era Deus. Houve um amigo que jogava comigo desde os 11 anos, e que apanhei também na Selecção, que mudou a personalidade. Tive muitos problemas com ele. Ainda fez uma boa carreira, mas não a excelente que tinha de fazer. Porque era cagão, tinha o rei na barriga. Na Selecção A pegámo-nos à porrada. Não digo quem é porque sou amigo dele e só falo disto como exemplo. Hoje perdoou-lhe tudo. Porque não está escrito como se lida com isto.
Parte 3
Em Alvalade, fizeste uma época na equipa principal e ninguém te perdoou a saída para o FC Porto. Explicaste que recebias 70 contos por mês e ias ganhar 27 mil contos em três épocas?
Sempre o assumi. Tive logo problemas com o Jaime Pacheco e o Sousa porque ainda no Sporting disse: ‘Os da casa não valem nada e os de fora valem ouro’. Eles vinham para Alvalade e viram aquilo como uma ofensa, porque acabei por ir fazer o mesmo para o FC Porto. Quando me viram na Selecção, encostaram-me à parede: ‘Ouve lá, miúdo, então vais meter os adeptos contra nós, a dizer que vimos ganhar ouro para o Sporting? E tu foste ganhar o quê para o FC Porto, prata?’. Queria-me defender e não sabia como. Tinham toda a razão. Foi uma lição. Fui egoísta e não pensei neles.
Como se deu a mudança para o FC Porto?
Estava a passar os piores dias da minha vida. Era um puto alegre, divertido, mas o [treinador John] Toshack já me tinha dito que não contava comigo e na imprensa começava a sair que seria emprestado à Académica. Foi quando apareceu o FC Porto e o Pintinho [Pinto da Costa] me disse: ‘Paulinho, aqui vais ser tu e mais dez’. Logo aí vi a inteligência dele.
E oferecem-te um contrato que reflectia essa ideia…
Não era só o contrato. Era a coragem. Apostaram a 100% em mim. A seguir ao [Fernando] Gomes era o mais bem pago. Estou agradecido para sempre ao Pinto da Costa. A ele devo tudo, porque o Sporting não acreditava em mim.
Fizeste uma contraproposta ao Sporting, inferior à do FC Porto. O que te disseram?
Pedi 18 mil contos por três épocas e responderam que era maluco. Mas há uma lógica. O Armando Biscoito, a pessoa com quem fui falar, pode ter pensado que eu estava a fazer bluff. Muitas pessoas dizem que nunca chegou a falar com o [presidente] João Rocha.
Recebeste ameaças. Como descreves esses tempos?
Foram seis meses horríveis, mais para a minha família do que para mim. Todos os dias atiravam pedras às janelas de casa dos meus pais. Quando vi minha mãe a chorar cheguei a pensar: ‘Vou deixar isto tudo’.
Quem se lembrou de alegares falta de condições psicológicas para romperes o contrato com o Sporting?
Acho que foi o Guilherme Aguiar, o advogado do FC Porto. Foi uma jogada genial.
Nunca sentiste que o Sporting deveria ter recebido alguma compensação?
Na altura era impossível pensar nisso. Não existiam os direitos de formação, tinha 18 anos, estavam a dizer-me que não contavam comigo e apareceu outro clube que me dava não sei quantas vezes mais e que ia apostar em mim. Não pensas em nada mais. Pensas na tua vida. Nenhum ser humano faria diferente. Mas é preciso coragem e eu tive-a.
Nos primeiros tempos andaste escondido no Porto?
Havia o risco de ser sequestrado pelas pessoas do Sporting, porque só seria jogador do FC Porto quando fizesse o primeiro jogo. Vivi em casa do Álvaro Braga Júnior e andava sempre com guarda-costas.
Tiveste algum problema?
Só uma ‘pintadas’ ao pé de minha casa, por ser de Lisboa. ‘Mouro, filha da mãe, não te queremos’. Com adeptos do Sporting, nada. Mas cá em baixo foi tremendo. Só pude voltar ao Montijo no Natal [seis meses depois de ter chegado ao FC Porto].
No balneário do FC Porto olharam-te de lado por seres de Lisboa?
É normal. Havia uma grande rivalidade norte-sul e era um grupo muito fechado. Chegas e vais ganhar mais do que quase todos. Conhecia alguns da Selecção e, quando fui para os cumprimentar no primeiro dia com um abraço, não fui correspondido. Se pudesse, tinha-me pirado a sete pés. Foi como na cidade: tive de os conquistar a pulso. Era odiado no Porto por alguns e em Lisboa por todos os adeptos do Sporting.
4ª parte
Que diferenças encontraste no FC Porto?
No Sporting havia vários líderes. O ‘Manel’ [Fernandes], o Jordão e o Oliveira. No FC Porto havia o Gomes e depois muitos sargentos, Lima Pereira, João Pinto, Jaime Magalhães, Zé Beto, Frasco. E mais abaixo muitos jogadores do norte, André, Semedo, Quim. Ali ninguém entrava, controlavam tudo. Ninguém podia falhar as regras. Todas as sextas faziam um almoço só entre eles. Não iam os de Lisboa nem os estrangeiros. E eu meti na cabeça que tinha que ir ao almoço. No ano seguinte fui convidado.
Só um ano depois?
Sim. E passei a ser sargento. Quando vi que estava com peso, consegui introduzir os estrangeiros e os outros no almoço. Almoçávamos e depois tomávamos café na Praça Velasquez. O jogador do FC Porto é ali rei. Era o único dia em que eu sacava o meu carro, o RS Turbo, só para dar ambiente. Um ano depois já me viam como um deles. Até o sotaque lá de cima já tinha. No campo tínhamos sido campeões e fora dele mostrei que seguia as regras.
Por exemplo?
Se te portasses mal, se fosses apanhado às tantas da manhã a uma quinta ou sexta-feira, era tremendo. Tudo chegava lá dentro. Estavas a ir contra o grupo.
Eram os jogadores a dar a primeira reprimenda?
Claro. ‘Ó filha da mãe’ - ali não há outra maneira de falar -, ‘estás a falhar-nos. Não nos falhes, ******, precisamos de ti para domingo’.
E como lidava a equipa técnica com as quebras de disciplina?
Havia o Octávio [Machado], que era o polícia mau, o cão – sem ofensa porque devo muito ao Octávio –, e o polícia bom que era professor João Mota. Se passasses para cima, ou seja, se fosses ao Artur Jorge, já era gravíssimo. E se depois fosses ao Pintinho, então era muito, muito grave.
Foste muitas vezes ao Artur Jorge?
Muitas. Mas mais em defesa do grupo, a partir do segundo ano, quando já era líder.
Saías muito à noite?
Saía. Mas quando podia. Íamos ao Swing, quando ganhávamos, mas não abusava. Se tivesse que abusar vinha ao Montijo. Normalmente não saía das regras.
Octávio Machado andava sempre de olho em ti?
Era o cão e o gato. Mas adorava-o na parte boa, e ele tinha sempre razão. Só que havia momentos em que eu disparava. Um gajo estava em casa e ele aparecia à meia-noite a tocar à campainha. ‘Que é?’. ‘Ah, já estás aí? Ok’. Uma grama a mais ou a menos de peso era logo motivo para uma discussão do outro mundo. ‘O que é que fizeste ontem, car… não almoçaste?’. Isto era se falhasse uma grama, se fosse um quilo era logo chamado ao Artur Jorge. Não era só comigo, era com todos. Às tantas já ia para o treino a rezar. Pesávamo-nos todos nus, nem sequer havia ali números de meter o relógio no bolso para ajudar.
As tuas maiores pegas foram sempre com Octávio?
Claro. O Octávio era o meu controlador, mas estou-lhe agradecido, porque eu era miúdo e ele fazia de polícia mau. Mas tinha também pegas com outros. Teve uma tão grande com o Madjer que saímos todos dos quartos para ver o que se passava. O João Pinto teve que se pôr no meio dos dois, isto tudo em cuecas. Estávamos proibidos de comer nos hotéis fora do Porto, com o medo que metessem qualquer coisa na comida. Mas às vezes tínhamos fome à noite e corrompíamos os empregados. Se nos apanhava, o Octávio fazia queixa do empregado e a nós dava-nos broncas. ‘Amanhã vais estar de caganeira, se meteram aí veneno como é que é?’. Era uma coisa única. Quando íamos à Selecção, estávamos proibidos de tocar nas vitaminas. Levávamos as nossas. Ele ia ver os treinos e perguntava-me quanto é que estava a pesar. ‘Já tomaste as vitaminas? Já fizeste não sei o quê?’.
O que acontecia quando o Octávio tocava à campainha e não estavas em casa?
Esperava-me.
E quando chegavas?
Se fosse muito tarde, às duas da manhã, dava-me uma bronca. Mas já o conhecia e não abusava. Sabia que depois de terça-feira não podia fazer isso. Mas havia dias que tinha que levar com o Artur Jorge de manhã, que era do pior. Rasgava-me todo.
Era mais duro do que o Octávio?
Porra! Se passavas lá para cima… Com o Octávio era cara a cara. Com o Artur não podias, baixavas a cabeça.
Ao Artur Jorge não respondias?
Responder o quê, fogo! Baixavas as orelhinhas e só ouvias. ‘Agora não treinas. Vai-te embora para casa, desaparece’. Aos gritos.
O Artur Jorge tem uma imagem de alguém mais sereno…
Isso foi depois do Benfica, depois do cancro. No FC Porto era o maior. Mas o maior a sério. Foi um dos maiores que tive.
Conta-nos um episódio.
Um dia fomos jogar a Coimbra e era como uma final para nós. Estávamos a lutar com o Benfica e fomos campeões só na última jornada. O que é que eu fazia muitas vezes? Vinha ao Montijo a seguir ao jogo de domingo – sempre com autorização, não podia simplesmente desaparecer - e depois só havia treino terça de manhã. Na segunda dormia da meia-noite às cinco e arrancava para o treino. Treinava e a seguir dormia a sesta. Para o tal jogo em Coimbra, cheguei atrasado ao primeiro treino da semana. E ele não admitiu. Normalmente dava-me broncas, mas, naquele dia, cheguei lá e disse-me: ‘Vai-te embora, pá, não treinas’. Assim que me disse isso, pensei: ‘Ui, vou já para a cama, maravilha’. Havia treino à tarde e cheguei a horas, mas quando fui ao roupeiro não havia ordem para me darem o cesto. Tive que ir falar com o homem: ‘Vai-te embora, pá, não treinas’. Quarta de manhã, a mesma coisa. Quinta, igual. E eu caladinho. Sexta-feira já havia apostas entre o pessoal. Joga, não joga, é convocado, é titular, vai para o banco. E eu todo lixado.
Foste titular?
Saiu a convocatória e lá estava o meu nome. Que alívio. O treino de sábado de manhã era o mais intenso da semana, com as peladas atrás da baliza. Nos clubes por onde passei, era só ‘calma, não toca’. Ali era ao contrário. Caneleiras até cima, ai minha mãe, metiam-te o pé na cara. O jogo de amanhã? Qual quê? O jogo começava ali. Se te lesionasses, azar. Nesse sábado cheguei lá e a mesma coisa: ‘Não treinas’. No dia a seguir fui titular e fiz um jogo do outro mundo. No último segundo, com o relvado cheio de poças porque chovia torrencialmente, alguém despejou a bola para a frente. Sprintei, toquei na bola antes do Kikas, da Académica, e dei um mergulho, mas um mergulho mesmo a sério. E o árbitro, que estava no meio-campo, marcou penálti. O Kikas nem me tocou, mas só dava para perceber à segunda repetição na televisão. O FC Porto fez o 2-1 e acabou o jogo. No balneário, o Artur Jorge cumprimentou todos um a um. E passou por mim sem me tocar.
Ficaste chateado?
Ele nunca foi de me dizer mais do que ‘bom jogo’. Quando me fui despedir, antes de ir para Madrid, disse-me: ‘Sabes por que nunca te elogiei? Porque tu vais ser o melhor jogador do mundo. Se te elogiasse perdias-te. E quase acertou, fiquei com a Bola de Prata. [a Bola de Ouro de 1987 foi para Ruud Gullit].
É verdade que o FC Porto chegou a pôr uma mulher atrás de ti para te vigiar?
É uma história incrível. Custa-me falar nisso.
Sentiste-te enganado?
Enganado, traído. Se antes tinha um escudo de um metro à minha volta, passou a ser de cem. Tudo o que se aproximava para mim era bicho. Não perdoei a essa mulher. Era uma amiga especial, dez anos mais velha ou mais.
Como descobriste que andava a espiar-te?
Contava-lhe tudo, tinha confiança nela, e depois o FC Porto vinha a saber. ‘Estiveste no Teenagers em São João da Madeira’. Mas como é que sabiam? Ninguém me tinha visto… Contava-lhe o que tinha feito na noite anterior. ‘Estive em casa e dei duas quecas até às três da manhã’. No outro dia já sabiam de tudo no FC Porto. Ainda pensei que tinham metido escutas lá em casa, mas cada vez desconfiava mais dela e montei-lhe uma armadilha. A partir daí passei a ter uma muralha à minha volta. Talvez até me tenha feito bem.
Nunca confrontaste o FC Porto?
Não. Nem podia. Era a minha palavra deles contra a minha.
Meses depois conheceste a futura mãe dos teus filhos. Ainda estavas na defensiva?
Claro. Não só com a mãe dos meus filhos, a Isabel, mas com todas as mulheres que conheci antes de a encontrar. Conhecia-a já depois do Mundial do México, em 1986.
Já agora, o que foi feito (também a sublinhado) justificava-se muito mais ser feito ao Merdinho. Mas anda tudo displicente, especialmente as claques e ele anda só a festejar 3 títulos que serão 4 hoje como se nada fosse.