Os Superbowls alfacinhas

Como logo à tarde temos uma final contra os velhos inimigos, vou recordar três outras finais Sporting – Benfica que se arriscam a ficar esquecidas. Não as vi referidas nos jornais na semana que passou, mas no seu tempo certamente que originaram tanto entusiasmo como a que logo se jogará. São coisas do futebol. Torneios que outrora faziam correr rios de tinta e emocionavam os adeptos hoje nem são referidos nos palmarés dos clubes.

Trata-se de três finais do Campeonato de Lisboa, competição na qual o Sporting conquistou pela primeira vez o estatuto de Grande. O Campeonato de Lisboa era decidido por pontos. Porém, em algumas das épocas em que se disputou, as regras previam um jogo de desempate, um “spareggio scudetto”, uma “Grand Final”, um “Superbowl”, se duas equipas chegassem ao final com o mesmo número de pontos. Esta é a história dos três “Superbowls” alfacinhas.

Época 1918/19

Apesar dos esforços dos fundadores, que conceberam e desejaram um clube muito acima dos demais, quer nas condições oferecidas aos atletas, quer na sua própria organização, o Sporting tardava em afirmar-se como um clube capaz de vencer campeonatos regularmente. Antes de 1918/19, apenas tínhamos conseguido vencer o campeonato de Lisboa em 1914/15. Ao invés, após o fim do domínio dos ingleses do Carcavelos, que conquistaram o seu último título em 1908/09, o Benfica parecia ter tomado as rédas do futebol lisboeta, vencendo o campeonato em 1909/10, 1911/12, 1912/13, 1913/14, 1915/16, 1916/17 e 1917/18. Para além do Sporting em 1914/15, só o Clube Internacional de Futebol, em 1910/11, tinha conseguido superar as papoilas.

É natural que os benfiquistas, vencedores de sete dos últimos nove campeonatos, se considerassem favoritos. Mal sabiam que a sua época de ouro no campeonato lisboeta já passara e que o futuro pertencia ao Sporting.

A época 1918/19 foi a primeira sem José Alvalade, que morrera ainda muito jovem em 1918, vítima de pneumonia. A morte do maior dos fundadores não abalou a equipa, que conseguiu acabar com o domínio encarnado (que se tornava difícil de suportar, tendo em conta a já considerável e acesa rivalidade entre os dois clubes) e conquistar o seu segundo título, ao mesmo tempo que se estabelecia a regra do campo de jogos leonino se chamar “José Alvalade”.

Para além dos dois rivais, participaram no campeonato o Vitória de Setúbal (a participação de equipas do distrito de Setúbal no campeonato lisboeta verificou-se em várias edições), o CIF e o Império Lisboa Clube. Foram precisamente os sadinos quem mais luta deu a Sporting e Benfica, batendo ambos os clubes uma vez. No final do campeonato, os setubalenses contavam com 10 pontos, menos dois do que nós e do que o Benfica.

Entre os jogadores do Sporting destaco dois: Francisco Stromp e Jorge Vieira. Stromp todos sabem quem é. Na altura era capitão da equipa (e foi sempre a encarnação do espírito sportinguista) e costumava parar no Martinho da Arcada. Era mesmo ali que escrevia os postais convocando os jogadores para a próxima jornada, rodeado de grandes luminárias da política e da literatura, quem sabe com Fernando Pessoa na mesa do lado. Jorge Vieira, o defesa esquerdo, foi o tal que andou quilómetros a pé (do Dafundo a Carcavelos) uns anos antes para ver o primeiro jogo disputado entre o Sporting Clube de Portugal e o Grupo Sport Lisboa, que nós ganhámos por 2-1. Em 1921 Jorge Vieira tornar-se-ia o primeiro português a arbitrar um jogo no estrangeiro e foi um dos grandes ídolos do futebol nacional no primeiro terço do século XX.

Naquela que podemos chamar “regular season”, cada equipa vencera o jogo disputado como visitado por 3-1. A final foi disputada a duas mãos, com o primeiro jogo, no campo adversário, a ter lugar em 14 de Julho de 1919, um mês menos um dia após a que deveria ter sido a última jornada do campeonato, porque o Benfica não se conformara com a anulação de um golo no jogo que perdera por 1-2 com o Vitória e apresentara protesto formal junto da Associação de Futebol de Lisboa, pretendendo a validação do golo, o que lhe daria mais um ponto e o título. A AFL indeferiu o protesto e procedeu ao agendamento dos dois jogos decisivos.

Na primeira partida o Sporting alinhou com Quintela, Jorge Vieira e Amadeu; Caetano, Perdigão e Stromp; Jaime Gonçalves, Torres Pereira, José Rodriges e Marcelino. Se contaram os jogadores e se ficaram pelos 10, aviso desde já que não há gralha. É que jogámos mesmo com 10. Tal a raça do leão! O jogo viria a acabar com 10 para cada lado, pois o jogador do Benfica Cândido de Oliveira, que ainda conheceria a glória ao serviço do Sporting, como treinador dos violinos, que no final da época seguinte deixaria as papoilas para fundar o Casa Pia AC, que Salazar mandaria para o Tarrafal por seis meses (quando Cândido era o seleccionador nacional), que chegou a treinar o Flamengo e que hoje dá nome à Supertaça, acabou por ser expulso.

Contra todas as expectativas o Sporting venceu. 1-0, golo de Perdigão. Com a hegemonia do Benfica em risco de ser quebrada, o jogo da segunda mão tornou-se de “alto risco”. Houve distúrbios no campo e entre os espectadores. O jornal “Os Sports” falou em invasões de campo, revólveres nas bancadas e num jogador do Sporting apedrejado após o jogo. Tal era a paixão que o futebol já despertava nessa altura, dois anos após o assassínio de Sidónio Pais e o regresso da “República Velha”, menos de um ano após o fim da Guerra que deveria ter acabado com todas as guerras…

Foram expulsos quatro jogadores, um nosso e três benfiquistas. Outro jogador do Sporting foi expulso, mas recusou-se a sair. Ao intervalo já havia só 19 jogadores em campo, tendo sido expulsos um do Sporting e dois do Benfica. O Sporting alinhou com Quintela, Amadeu e Jorge, Caetano, Artur José Pereira (que iria fundar o Belenenses nesse mesmo ano de 1919) e Boaventura, Torres Pereira, Stromp, Perdigão, José Rodrigues e Marcelino. O Sporting chegou aos 2-0, sendo o primeiro golo da autoria de Perdigão e tendo-se o nome do autor do segundo tento perdido “nas brumas da memória”. O golo benfiquista foi marcado por Cândido de Oliveira. Vencido o jogo por 2-1 e superados os apedrejamentos, o Sporting pôde festejar o título.

Mas o Benfica não desarmou. Apesar de batido nas duas partidas, continuou com os protestos e, segundo consta, foi por pouco que a AFL não voltou atrás e não lhe deu na Secretaria o que não conquistara em campo. O Sporting fez saber que, se assim fosse decidido, daria o título ao rival, mas então que não contassem com ele no campeonato de Lisboa – só jogaria contra clubes estrangeiros. A AFL decidiu, finalmente, rejeitar os protestos encarnados e atribuir em definitivo ao Sporting o merecido título de campeão de Lisboa da época 1918/19.

Época 1927/28

1928 foi o ano das Olimpíadas de Amesterdão, primeiro torneio internacional para o qual Portugal se conseguiu qualificar, e do surpreendente Carcavelinhos campeão de Portugal. Foi também o ano da tournée ao Brasil em que o futebol do Sporting adoptou em definitivo o equipamento às riscas verdes e brancas do rugby.

Entre 1918/19 e 1927/28 viveu-se uma época “democrática” no Campeonato de Lisboa, com uma repartição de títulos entre vários clubes. Em 1919/20 venceu o Benfica, em 1920/21 o Casa Pia (primeiro campeão invicto da história da prova), em 1921/22 e 1922/23 o Sporting, em 1923/24 o Vitória de Setúbal (segundo umas fontes) ou o Casa Pia (segundo outras), em 1924/25 o Sporting e em 1926/27 o Vitória de Setúbal. Duas coisas saltam à vista: primeiro, o Sporting começou a tornar-se um vencedor habitual da prova. Segundo, em 1927/28 o Benfica já não ganhava há oito anos. Como disse antes, a sua “época de ouro” findara.

Ainda trajando “à Stromp”, o Sporting disputou o campeonato de Lisboa com o Benfica, o Belenenses, o União de Lisboa, o Carcavelinhos (que se haveria de fundir com o anterior para formar o Atlético), o Casa Pia, o Império e o Bom Sucesso.

Na equipa de 27/28 pontificavam o “capitão” Jorge Vieira, o guarda-redes Cipriano, o ponta-esquerda José Manuel (Martins) e o ponta-direita/ interior-direito Abrantes Mendes (se estão a perguntar-se se por acaso não será…, a resposta é sim). Também fazia parte da equipa um jogador chamado Penafiel. Homem modesto, nunca revelou a ninguém que tinha sangue azul e que era, na verdade, o marquês de Penafiel. Segundo dizem, só quando morreu é que os seus antigos companheiros souberam, pela notícia necrológica, que tinham jogado lado a lado com um aristocrata.

Desta vez, Sporting e Benfica acabaram empatados com 22 pontos. O Sporting derrotara o Benfica em casa por 3-0, com golos de José Manuel (2) e Felipe e perdera fora por 0-1 com um auto-golo do guarda-redes Cipriano a cinco minutos do fim. De resto, para além de um empate bizarro contra o último classificado, o Bom Sucesso, de outro empate contra o Belenenses e de uma derrota contra o União, o Sporting vencera todos os jogos, embora sem grandes goleadas. Os resultados mais dilatados foram os referidos 3-0 ao Benfica, os 5-2 ao Império, os 4-1 ao Belenenses e os 3-0 ao Casa Pia.

Chegada a finalíssima, disputada em 8 de Abril de 1928, o Sporting não deu hipóteses ao adversário, batendo-o novamente por 3-0. Alinhámos com Cipriano, Penafiel e Jorge Vieira; Matias, Serra e Moura e Martinho; Abrantes Mendes, Francisco, Jurado, Cervantes e José Manuel. A dupla goleadora José Manuel/ Abrantes Mendes funcionou em pleno, marcando cada um um golo (José Manuel o 1.º, Abrantes Mendes o 3.º, no último minuto). Cervantes foi o outro marcador de serviço. Finda a época, José Manuel ficou com 15 golos em 16 jogos oficiais, Abrantes Mendes com 13 golos em 15 jogos oficiais.

Época 1935/36

A última Superbowl alfacinha trouxe, se calhar, a vitória mais saborosa das três “finalíssimas”, numa época que ficaria marcada pela “dobradinha” Campeonato de Lisboa/ Campeonato de Portugal.

Eram anos em que o Sporting e o Belenseses dominavam o futebol de Lisboa. Desde 27/28, tínhamos triunfado em 1930/31, 1933/34 e 1934/35, enquanto que o Belenenses fora campeão em 1928/29, 1929/30 e 1931/32. O Benfica triunfara em 1932/33.

A equipa do Sporting, em que ainda jogava Abrantes Mendes e em que já jogavam Soeiro e Pireza, perdera os dois jogos contra o Benfica, por 0-4 e 1-2, e só logrou chegar ao final empatada com as papoilas graças aos deslizes destas contra outros clubes e pelo facto de ter vencido todas as restantes partidas. Findas as dez jornadas da prova, em que também participaram Belenenses, Carcavelinhos, Barreirense (outra equipa do distrito de Setúbal) e União de Lisboa, ambos os clubes tinham conseguido 8 vitórias e 2 derrotas.

Para compensar as duas derrotas com o Benfica, foi necessário, como já disse, vencer todos os outros jogos. O União de Lisboa foi goleado fora (7-1) e em casa (6-0). Os alcantarenses do Carcavelinhos foram despachados com 4-2 (em casa) e 4-0 (fora). O Barreirense também amargou duas goleadas, 5-0 e 6-1. Finalmente, o Belenenses foi batido à justa nos dois jogos, 1-0 nas Salésias e 2-1 no Campo Grande. Graças a estes oito sucessos o Sporting pôde forçar a finalíssima, que teve lugar no dia 12 de Fevereiro de 1936, nas Salésias, o estádio do Belenenses, na altura o melhor estádio de Lisboa (e, segundo creio, o único com campo relvado) e palco habitual de jogos internacionais e da final da Taça.

O Sporting alinhou com Dyson, Jurado e Vianinha; Correia (também conhecido por Abelhinha), Rui de Araújo e Raúl Silva; Mourão, Pireza, Soeiro, Rui Carneiro e Lopes. Soeiro marcou aos 28 minutos e atingiu-se o intervalo com 1-0 no marcador. O final do jogo seria memorável, com quatro golos nos últimos 24 minutos (média: um golo a cada seis minutos). Lopes duplicaria a vantagem aos 66 minutos, mas Vítor Silva fez o 2-1 quatro minutos depois. O Sporting não se deixou abalar e voltou a marcar por duas vezes, por Rui Carneiro aos 79 e por Lopes aos 90, possivelmente numa altura em que o Benfica tentava o tudo por tudo.

E porque foi esta a vitória mais saborosa? Porque dos cinco jogos oficiais que o Sporting disputou com o Benfica nessa época, ganhou um e perdeu quatro. Mas ganhou o único em que a vitória valia um título.

Como referi no início, hoje em dia estas três finais caíram no esquecimento. Mas foram jogadas. E triunfámos em todas elas. Por isso, quando virem a lista das finais Sporting – Benfica da história, não se esqueçam destas três.

Pireza,

Simplesmente delicioso este post! :clap:

Que nos inspire para daqui a pouco! :arrow:

Mais uma lição de história Sportinguista!

Muito bem caro Sr Pireza :clap:

Mais um texto directamente para o álbum de História Sportinguista. Ter um forista que nos permite momentos destes é realmente um valor acrescentado!

:clap:

Excelente post…
Gostei particularmente da “estória” do Penafiel…

:arrow:

Mais um excelente tópico Pireza! :clap:

É sempre bom ler algo de diferente da acefalia e baixeza de nível que se têm instalado neste espaço (no fundo, é uma tentativa de um numeroso grupo de sportinguistas de rivalizar em mediocridade com o serorc).

Grande post, Pireza. Obrigado por partilhares estas histórias, pois aquilo que somos hoje deve-se muito ao antigamente do nosso Clube.

Isto é o Sporting, meus amigos!

Pireza, obrigado por teres partilhado connosco estes textos :great:

Obrigado Pireza :great: