Regularmente, vamos bater a esta questão. O Majestade colocou-a numa discussão há dias. Numa das AG que chumbou o projecto Franco ouvi um grupo de sócios atrás de mim insurgir-se contra o João Mineiro - penso que era ele - porque causa deste tema. O argumento é sempre o mesmo: “mas estes líricos pensam que alguém quer entrar na SAD do Sporting para perder dinheiro?”, dizem-nos. Assim dito, parece que o argumento encerra a discussão. Só que o problema deste argumento é que parte do princípio que há um alinhamento automático de interesses entre o Sporting e os investidores e que a melhor maneira destes terem retorno do seu investimento é com a conquista de títulos pela equipa de futebol.
É difícil não sorrir (ou chorar quando é perfilhada por responsáveis do clube) com a ingenuidade desta visão. É que a vida económica está pejada de situações onde a saúde ou os interesses de uma empresa que é comprada são o que menos importa ao comprador. Às vezes a coisa é mais ou menos neutra: por exemplo,os grupos económicos geralmente compram jornais e TV não esperando obter lucro, mas sim influência para as decisões políticas e económicas que afectam o seu core business. Mas muitas vezes a coisa é mais nefasta. Por exemplo, o comprador pode estar exclusivamente interessado num activo da empresa a comprar - uma patente, um departamento de I&D, uma propriedade imobiliária ou até uma mera lista de clientes. O resto é carcaça para fechar e deitar fora.
O mesmo se pode passar com a SAD. Na verdade, o risco é bem elevado, já que esta é uma estranha sociedade anónima: não distribui dividendos e, logo, não tem um sustentáculo real para o valor das suas acções. Porque é que havia então alguém de se meter nisto? Pode parecer estranho, mas a resposta é: muita gente. Vejamos só três casos de hipotéticos investidores para quem o controlo - ou pelo menos, uma participação substancial - da SAD do Sporting pode interessar (e muito).
Sou uma empresa de construção e estou-me um bocado nas tintas para o futebol. Mas sei que o Sporting dispõe de terrenos de dimensões apreciáveis numa zona com um forte potencial de valorização que é Alcochete. Se adquirir uma participação razoável na SAD, posso interferir no futuro negócio de venda desses terrenos, garantindo me são vendidos (ou a uma subsidiária minha) a um preço e em condições que me são altamente favoráveis. Com a mais valia que realizo - seja da revenda do terreno, seja do seu desenvolvimento urbanístico - estão mais que pagas as minhas acções.
Sou um intermediário no negócio da venda de direitos televisivos. Até agora tenho nas mãos um negócio da China: compro os direitos aos clubes por uma tuta e meia e revendo-os por bastante mais às TV. Melhor ainda, como sou um dos principais accionistas do único canal pago do país que transmite os jogos, recebo a dobrar. É o crime perfeito. No entanto, o meu negócio tem uma sombra no horizonte: e se os maiores clubes se põem a comparar as migalhas que lhes dou com o que se paga lá fora? E se depois começam a pedir um preço mais justo na óptica deles? Nada como cortar o mal pela raíz! Compro uma participação significativa em todos eles, garantindo estou numa posição privilegiada para influenciar o processo de venda dos direitos da maneira que mais me convém. Mesmo que não consiga entrar em todos, asseguro que nunca os clubes se concertarão para ganharem força negocial . A manutenção do meu monopólio compensa dezenas de vezes os trocos que gastei na compra das acções.
Sou um empresário poderoso e fundei uma empresa de representação de futebolistas. Tenho dezenas e dezenas de jogadores na minha carteira, mas várias chatices que impedem o meu crescimento. Umas vezes são os treinadores que não querem pôr os meus jogadores a jogar, dizendo que há melhores no plantel. Outras vezes são os dirigentes que criam toda a espécie de obstáculos a transferência lucrativas para mim só por causa dos interesses dos clubes deles. Outras vezes ainda não aceitam os meus jogadores e tenho de os pôr a jogar em clubes obscuros onde não têm visibilidade nenhuma. Bolas, o que eu precisava era de controlar um clube com um certo nome mas onde já não houvesse grande pressão. O Sporting parece feito de encomenda: tem nome e exposição mediática, mas entraram na via esquizofrénica em que já acham que segundos lugares são grandes feitos e goleadas na Europa inevitabilidades orçamentais. Além disso, prospecção, nem vê-la! Já ninguém vai estranhar se montar uma equipa com meus jogadores e os vender quando me der na bolha - até são capazes de ficar agradecidos! E depois aquela Academia… Humm… Se consigo pôr as minhas mãos nos passes daqueles miúdos… Só o rótulo da formação que deu ao mundo Ronaldo, Simão, Nani & Cia e negociar a sua saída. Caramba, a fortuna que está ali!
O que é que há em comum entre estes três potenciais (e nalguns casos já reais) investidores da SAD do Sporting?
Todos pretendem de facto ganhar dinheiro com a sua participação:
Para nenhum deles a conquista de títulos e a excelência desportiva é uma prioridade. Para uns é um bónus, mas não o core business - e de resto os proveitos de se chegar aos títulos não compensam, dado o investimento necessário e o risco inerente à probabilidade de falhanço. Para outros é absolutamente indiferente. Para outros ainda, até é capaz de atrapalhar mais do que ajudar, porque pode criar uma onde de euforia e de maior exigência para com a equipa.
E chegamos assim ao grande problema da perda de controlo da SAD: tal como está pensada a SAD, pode facilmente criar-se uma situação em que o accionista Sporting Clube de Portugal - o “otário de serviço” que continua a meter activos nesta SAD para assegurar que o valor das acções de uma entidade que não distribui dividendos não cai para zero - é o único que está interessado na conquista de títulos e no sucesso desportivo. Sendo ele maioritário, a situação já é o que é. Mas se ele se torna minoritário, está bom de ver que esse objectivo vai cair uns bons degraus na escala de prioridades - e fica definitivamente fora das nossas mãos fazê-lo regressar ao seu sítio devido.
As usual, um belíssimo texto. Está tudo dito, bem explicado, com os pontos de vista de quem é contra a perda de maioria da SAD perfeitamente definidos. Felizmente creio que a curto prazo não nos tentarão deixar em minoria na SAD. A médio prazo parece-me que voltaremos a sofrer este risco…
Este texto vale a pena ler, reler e publicitar a todos os Sportinguistas que conhecemos.
Todas as empresas correm esses riscos, uma mais que outras dependendo da sua grandeza/poder, situaçâo financeira etc
O criterio é a selecçâo dos parceiros investidores com quem se faz negocio; com os parceiros certos cria-se uma situaçâo de win-win para todos, com os parceiros errados corre-se os riscos de que falas.
Percebendo a ideia do Petro, aproveito para realçar um aspecto que, pelo menos a mim, me parece sumamente importante.
A “perda” da maioria da SAD começou no momento em que os sportinguistas perderam o comando do seu próprio clube.
A coberto de um manto de sportinguismo, uma série grande de gente, alguns deles muito longe de se identificarem com a realidade leonina, tomaram de assalto o clube e a partir daí implementaram a sua estratégia final, aproveitando nalguns casos a boa vontade de pessoas que lhes “abriram as portas”.
Saber que o “guru” da estratégia financeira do Sporting é um homem que nem de desporto gosta (eventualmente um ou outro daquele que se costuma alinhar com as elites, e provavelmente mesmo estes por interesse), nunca na vida, que já é relativamente longa, se interessou minimamente pelo Sporting, desconhece de forma ABSOLUTA a história do clube, e simplesmente porque o seu amigo de infância, à semelhança do que fez/faz com outros projectos profissionais, o chamou para dar a sua colaboração, aparece a delinear princípios que, a serem aceites, vão traçar o rumo futuro do Sporting, dar-me-ia vontade de rir, não fosse o tema tão delicado.
Não é “se vamos perder o controlo da SAD”, a questão é que já perdemos o controlo do próprio clube, mas, e aqui deixo apenas a minha opinião neste momento, em forma de previsão, e faço-o porque sempre assim foi, não digo as coisas só quando elas acontecem, marquem as minhas palavras:
Vai chegar o tempo em que finalmente os abutres deixarão o Sporting e os associados retomarão o controlo efectivo do clube, só que nessa altura é porque a missão está cumprida, a carne já foi toda usada, e então será tempo de ver alguns dos que tantas vezes afirmaram que não possuem tempo nem vida para isto, apresentarem-se ao serviço para fazer a gestão da empresa que, em poucos anos, “herda” tudo o que o Sporting tem de valioso e o deixa sem nada.
As acções da SAD estão cotadas em Bolsa, o que significa que qualquer um as pode vender e comprar - incluindo os nossos três investidores. O Sporting não controla quem compra as acções que não são suas. Se deixa de ter a maioria, deixa de poder bloquear qualquer decisão sozinho - mesmo que ela seja lesiva dos interesses do clube.
Sim, mas pelo menos a situação ainda não é irreversível - como será depois da perda do controlo da SAD. Nas últimas eleições, foram os Sportinguistas que optaram por continuar a apostar num modelo de gestão esgotado e na navegação à vista - mas pelo menos foi uma opção dos Sportinguistas. E nada garante que as coisas continuem assim por muito mais tempo. Sem controlo da SAD, tanto faz que votem A ou B, que os efeitos práticos serão quase nulos.
Infelizmente, isso está fora de questão, pois implicaria que o Sporting Clube de Portugal recomeçasse a competir na última divisão dos distritais da AF Lisboa.
A este propósito, coloco aqui o excerto de uma entrevista dada por José Roquette em 1999 que refere precisamente o exemplo do Farense que foi “adquirido” pelo Juan Hidalgo (que depois mais tarde veio a vender tudo a terceiros):
[b] O CASO-FARENSE[/b]
- O senhor é empresário e dirigente desportivo. Como vê, nessa dupla função, o recente negócio entre o principal accionista do Salamanca, Juan Hidalgo, e o Farense?
Com alguma frustração e tristeza, até por verificar que não foi possível a nível nacional cuidar adequadamente das questões relacionadas com a saúde económico-financeira dos clubes. Por outro lado, este caso vem tornar ainda mais válida a visão que o dr. Alberto João Jardim tem do Marítimo. É pena que o Algarve, uma zona turística ainda mais importante que a Madeira, não pudesse ter feito o mesmo com o Farense.
- É realista pensar que um grupo internacional possa entrar no capital da Sporting SAD?
Esse interesse já apareceu. Houve um grupo inglês que fez uma aproximação ao Sporting dizendo-se interessado no controlo maioritário da SAD. E dissemos liminarmente “não”. Essas defesas o Farense não as teve. Não acredito que tivessem, os seus dirigentes, aceitado este estatuto, que de alguma forma os torna menores, se pudessem dispor de alternativas melhores. E, se calhar, somos todos responsáveis por isso. A começar, repito, pelo Algarve.
- O Sporting foi surpreendido pela notícia?
Foi. E eu teria gostado que eventualmente alguém do Farense, na qualidade de dirigente de uma das mais antigas filiais do Sporting, tivesse falado antes connosco.
- Adiantaria alguma coisa? Pensa que poderia ter dinamizado uma solução para o Farense?
Eventualmente. Dentro do quadro legal. Como se sabe, o Sporting não poderia ser accionista de duas SAD’s. A lei não o permite. Mas poderia haver outras soluções que passassem por algumas pessoas interessadas no Sporting.
Também é interessante verificar um artigo espanhol sobre o mesmo assunto do Jornal “El Mundo Deportivo”, 29 de Outubro de 1999, página 25, que vai de encontro ao que o Petrovich escreveu:
Grande post e elucidativo, aliás já muitas vezes havia pedido uma explicação mais prática sobre isto! Afinal a minha visão lírica da coisa estava errada.
Os exemplos que dás são perfeitos. Obrigado Petrovitch!
O ponto 3 do Petrovich assume particular importância no caso do Sporting devido à Academia e matriz formadora que possui.
Corre-se o risco de sermos uma mera “farm” de jogadores para alimentar um outro clube de maior dimensão europeia. De certa forma já somos um pouco essa “farm”, só que por enquanto ninguém monopoliza as nossas transferências. Perder o controlo da SAD pode significar o mesmo que o Hidalgo fez com o Farense (em relação ao Salamanca).