O dia de futebol mais triste da minha vida

Tinha todos os ingredientes para uma tarde bem passada. Estava bom tempo, ou não estivessemos no final de Junho. Altura do ano em que os jogos de futebol são raros. Fala-se mais de contratações, vendas e dispensas, informação e contra-informação ventilada por um jornalismo cada vez menos sério e mais sensasionalista.

Um jogo que se assumia como a final de uma competição, numa tarde de sol, parecia um oásis no deserto futebolístico, portanto. E se esse jogo opunha os eternos rivais, Sporting e Benfica, tanto melhor! Junta-se a localização: a pouco frequentada pelos sócios Academia Sporting. E a decisão do título de júniores de 2009 parecia um óptimo plano para sábado à tarde (ah, que saudades dos jogos à tarde!).

E, durante 20 minutos, assim foi. Um jogo equilibrado, o Benfica a apostar no contra-ataque e o Diogo Rosado a dar um ar da sua graça com um remate ao poste. Ao meu lado, o pai, o avô e a menina adorável dos caracóis loiros, pacote de Cerelac com sabor a baunilha e chapéu na cabeça (“por causa do sol”, dizia o avô). Depois, aconteceu o que não consigo ainda explicar…

Ouviram-se tiros. Os sportinguistas na bancada provisória estavam mais interessados no que se passava fora do campo do que no jogo (e nós, na outra bancada, a pensar no que estariam eles a ver). De um dos topos, começa-se a ver uma manada furiosa avançar para o campo. Não, não era um conjunto de adeptos nem de pessoas. Era algo difícil de perceber. Vestiam-se sobretudo de vermelho, mas as cores não eram relevantes. Os miúdos começaram a fugir. Sim, porque no meio disto acabamos por nos esquecer de que estamos a falar de miúdos a jogar à bola, talvez metade sem ter sequer completado a maioridade. Instalou-se o pânico nas bancadas, as pessoas começaram a fugir e a invadir o relvado. E a manada prosseguiu, furiosa, lançando calhaus para dentro do recinto.

Fiquei em estado de choque e não me mexi. Vi-me num filme, num vídeo de fim-de-telejornal, secção de desporto, reportagem sul-americana. Choviam pedras e petardos. Alguns adeptos sportinguistas corriam em direcção de não-se-sabe-muito-bem-o-quê, à procura de sangue vermelho. Que se afigurava mais fácil ali, mesmo ao meu lado, na bancada reservada aos (familiares dos jogadores) benfiquistas – uns 20, no máximo. Tentei fazer o que podia, chamar à razão alguns sportinguistas que se lançavam na outra direcção, cegos de raiva. Até que ouço um estrondo e, olhando para o lado, vejo um petardo rebentado a menos de dois metros de onde estava. Era o caos. Mantivemo-nos nas bancadas, a assistir a este filme de terror.

Foi o dia mais triste da minha vida enquanto adepto desportivo. De certa forma, um pouco do meu optimismo em relação à humanidade perdeu-se ontem. Aquilo não era futebol, nem desporto, nem nada. Nem, de resto, podemos estar orgulhosos pelo comportamento de alguns sportinguistas no processo. Mais interessados na ordem, no bom-senso e no respeito por todos os sportinguistas presentes em Alcochete (e pelo próprio Sporting), resolveram responder às provocações, entrar no estúpido jogo dos confrontos gratuitos. Não, ali não estavam adeptos desportivos. Ali vi gente frustrada na vida, irritada com o seu emprego – ou com a falta dele -, zangada com amigos e família, gente à espera de uma desculpa para descarregar fisicamente toda a raiva e frustrações em alguma coisa.

Como é que se chegou a este ponto? Aparentemente os desestabilizadores benfiquistas nem sequer tinham bilhete – calando quem diz que nem devíamos ter fornecido os 200 bilhetes obrigatórios ao Benfica. Se não tinham bilhetes, que incompetência policial permite que esta manada (a quem o jogo menos interessa) circule numa zona restrita, ultrapasse vários checkpoints policiais e se veja num descampado tão cheio de objectos interessantes para arremessar? Mesmo fazendo o exercício aparentemente menos provável de a manada ter bilhetes, que incompetência policial permite que um grupo de alto risco daqueles entre no recinto por aquele percurso e depois do jogo começar? Se nos jogos séniores as claques são acompanhadas antes do jogo começar e ficam na bancada até o estádio estar vazio no final, que incompetência resolve achar sensato deixar as mesmas pessoas entrar a meio de um jogo através de um terreno baldio?

Mas nem me refiro tanto a isso. Como é que se chegou a isto? Como é que se chegou ao ponto deste ódio cego, desta procura do confronto pelo confronto (e aqui já estou a falar destas franjas de adeptos irracionais que vi ontem vestidos de ambas as cores). Façam-me um favor. A mim e a todos os que ontem queriam ver um jogo de futebol. À família da menina dos caracóis, cujo assento (felizmente já vazio) foi precisamente a zona onde vi rebentar o petardo. Façam-nos um favor e não vão aos jogos. Vão a Roma, aluguem o Coliseu e resolvam aí as vossas frustrações. Deixem-nos viver o desporto como ele deve ser vivido. E, por favor, não permitam que se repita este dia de futebol. O mais triste da minha vida.

© wild_oscar 2009

wild_oscar,
espantoso :clap:

Excelente texto!! Eu devo ter um anjo protector que desta vez me protegeu não me dando um bilhete para ir ao jogo. Se calhar foi melhor assim, acho que uma experiência desse género muda-nos a forma como vemos o futebol. E não é para uma visão melhor.

Sublime :wink:

Muito bom wild_oscar. :wink:

É somente mais um reflexo da podridão humana. Não é surpreendente.

Gostei muito do teu comentário wild_oscar. Assim fala um bom desportista :clap: :boohoo:

Lamento muito por todos os desportistas e amantes do futebol, do Sporting e do Benfica, que apenas queriam ver um bom jogo de futebol.
Lamento ainda mais que os clubes se deixem invadir por elementos e pessoas que mancham as suas histórias e o seu bom nome.
Lamento que pessoas como o wild_oscar ou a menina de 7 anos tenham de assistir e viver momentos animalescos como os de ontem.
Lamento que o amor pelo futebol e pelo desporto, das vítimas de estas situações, seja tantas vezes posto à prova e pisado por outros que apenas querem destruir.

Espero que tudo isto seja uma lição. Espero que se tomem medidas pelo futebol e para o futebol. Gente desta natureza deve ser banida do futebol. BANIDA.

Obrigado por partilhares o que tantas vezes parece ser difícil de transmitir.

infelizmente o teu texto muito bem escrito relata uma situação vergonhosa para o nosso clube que acaba por manchar a melhor academia de portugal e quem sabe do mundo…
esperemos que esses vandalos sejam punidos, e que sejam proibidos de entrar em recintos desportivos sejam eles de bilhar, nataçao, hoquei ou futebol.
O que terão pensado as mães que levaram os filhos que até não costumam ir à bola?
E depois querem que essas mães e crianças inocentes vão a recintos de futebol, onde existe sempre uns frustados prontos para provocar a confusão…
Espero que exemplos desses não se passem mais no meu pais, sem duvida que para mim foi um dos dias mais negros da excelente historia do sporting clube de portugal

O verdadeiro drama é que isto não está reservado a nós. Por esse mundo fora vê-se actos incríveis que em nada têm a ver com o desporto, e onde se vê o tremendo desrespeito que as pessoas têm umas pelas outras.

A todos os que dizem para os tratar na mesma moeda, eu só pergunto “nenhum de vocês tem amigos benfiquistas?” Eu tenho, e nenhum deles se revê naquelas poucas vergonhas, nenhum deles anda por aí a atirar pedras a outros seres humanos só porque apoiam outro clube.

A única coisa que ganham com ódio e violência é mais ódio e violência. Já à muito que se viu a incapacidade das autoridades em controlar adeptos desportivos. Os motins em LA depois da vitória dos Lakers, o adepto do Arsenal morto em Roma, os fins de semana “exóticos” em Glasgow quando há derby…

É triste, mas é assim, e no meio disto tudo, estão como dizes frustrados, criminosos, alcoolizados, etc. que só querem é andar à pancada e fazer merda. E quem quer apreciar um espectáculo desportivo está metido no meio da confusão, arriscado a um very light vindo não se sabe donde, lhe tirar a vida.

Para o excelente texto do Wild_Oscar fazer sentido, falta acrescentar o seguinte :

A situação relatada era previsivel e nesse sentido só com medidas profilácticas podia ser evitada !

A tolerância objectiva que houve com as três dezenas de hominídeos da pedra lascada que assaltaram a Academia, nunca podia ter acontecido !.

Sob pena de, quem devia zelar por isso, faltar também ao respeito que é devido ao Clube.

Caro Wild_Oscar, as rivalidades sempre existiram no futebol. Não és tu, nem ninguém que vai fazer com que elas terminem. Eu sou-te sincero, para mim, futebol sem rivalidades não é futebol. Um derby é sempre um jogo especial, é sempre aquele jogo que ninguém quer faltar e que na semana antes ninguém consegue dormir. É isto que faz do futebol, o desporto mais popular do mundo. Seja iniciados, infantis, juvenis, seja o que for, para mim um Sporting vs “Merda” é um jogo que temos de ganhar, dentro e fora de campo. Cresci a aprender isto, cresci a viver assim o futebol. Foi a mentalidade que me incutiram desde criança. Respeito a tua decisão, mas não acuses os que lá estavam a defender o clube de “frustrados” com a vida. Cada um tem o seu modo de defender o Sporting. Cada um tem o seu modo de representar o clube. Como um amigo meu diz, “Com os porcos temos de ir todos, nem que seja ao berlinde!”. Mais uma vez, respeito a tua opinião mas peço-te que respeites também a minha.

abraços.

Caro Dani,

A partir do momento em que a opinião de alguém desencadeia acções que interferem com a minha liberdade e com a minha segurança (e a segurança de todos os presentes), deixam de merecer a minha consideração e passam a ser um caso de polícia.
E quando alguém (quem quer que seja) vai para um jogo de futebol mais interessado em entrar em confronto do que em assistir à partida, pertence a um grupo de pessoas com quem não me identifico e entristeço-me por pertencerem à mesma sociedade em que me insiro. E houve coisas que vi naquele dia que não eram defender o clube. Nenhum dos dois clubes presentes.

parabéns! grande texto :clap: