Um Romance - assim é catalogado. Mas o primeiro que li, em que a ficção e a realidade se confudem… talvez porque bebe demasiada realidade. Pela primeira vez reparo que um romance assenta referências documentais publicadas na imprensa da altura. O início da história remonta a fins da década de 80, início da de noventa. Então onde está a ficção e onde está a realidade? A realidade, essa, está aqui ao nosso lado certamente, assim não a queiramos negar cegamente.
O personagem do Sr. Ferreira (consta que tem as orelhas grandes), então, nem vos digo nem vos conto. Certamente alguém na vida real tão vaidoso como este personagem, deve em algum momento ter exclamado “Eh! Mas este gajo sou eu! Sou mesmo um espectáculo, até já estou num livro!”
Algumas passagens para aguçar o apetite:
Narração:personagem Caetano, o moço do Sr. Ferreira, falando de um ex-sócio do patrão, numa empresa de pneus
“Apesar disso, a estratégia do Dr. Alfredo tem-se revelado eficiente, permitindo-lhe recuperar o atraso (…) e, tudo indicava, não tardaria a ganhar-nos a dianteira. Essa eventualidade está a enervar o Sr. Ferreira. Se não queremos ser ultrapassados, e na impossibilidade de sermos melhores, tínhamos (…) desembainhar um boicote.”
Narração: personagem Ondina, secretária de uma empresa concorrente de pneus, sobre o Sr. Ferreira
“Chegava ao ponto de me detalhar as batotices com que fustigava os clientes, uma das quais me provocou um ataque de riso: as dúzias de dez unidades!Garantia que eram raros os casos em que não resultava.”
“Mesmo aqueles clientes que se arrogavam que o senhor Ferreira não tinha capacidade para os enganar foram comidos com facturas em duplicado. Todos os meses se aprontava uma lista de alvos e resultava em mais de 50% dos casos. E muitos receberam produto inferior aquele que lhes mencionavam na factura. Mas não só, também havia casos com a colaboração dos fieis de armazém e chefes de compras, em que a mercadoria entrava e, em contrapartida, era devolvida outra equivalente à que fora descarregada e o resultado distribuído a meias. Chamava a isto martelar os clientes. Nem a seguradora escapava, com roubos importantes ao armazém, executados pelo segurado, com a conivência do director do multi-risco.”
“Por isso é que o Sr. Ferreira reivindicava, com desfaçatez e tola vaidade: “Tenho tudo minado!” (…) Não se importava de baixar preços a um nível ruinoso para obter mais vendas, acreditando que os clientes , ao não sonharem com as manhas do seu funcionamento, lhe permitiriam converter margens negativas em positivas. A rentabilidade é máxima, quando todos pensam que é mínima!”
“Problemas? Acho que não. O chefe de repartição de finanças almoça com o senhor Ferreira e leva o que precisa sem factura. Mas não só, a contabilidade para as finança é coligida por um funcionário das finanças. É o dois em um, está sempre tudo bem!”
Narração: personagem Dr. Alfredo ex-sócio do Sr. Ferreira, após descobrir ter sido alvo de concorrência desleal com origem em espionagem comercial
“Antes colocou em risco a nossa coesão empresarial; agora repete o gesto e faz o mesmo à nossa relação pessoal. O gene da trafulhice está-lhe na massa do sangue, é da sua natureza! A política do vale tudo, do não olhar a meios para atingir os fins é, e há-de continuar a ser, uma constante neste pulha. (…) Tenho constatado que o Kadhafi nos persegue de todas as maneiras possíveis (…)”
Bem caríssimos, e por por aqui me fico, caso contrário corro a tentação de transcrever o livro. Há mais, muito mais, como o processo em que o Sr. Ferreira é condenado pelas suas práticas comerciais ilícitas, as suas relações nas fontes de poder e decisão, a sua chegada a um clube de futebol e as ambições (já nessa altura) de chegar a um grande e, no final, o processo da apreensão de droga escondida em pneus num armazém em Vialonga.
A aproximação à realidade é visível em cada capítulo, mas sempre condimentada com temas quentes de negócios obscuros, droga, cartéis, poder, política e, como não podia deixar de ser, sexo…
Uma história a não perder.
hum! hum!