"Foi há quatro ou cinco anos que tive uma epifania enquanto via um desafio do Benfica na televisão. Após me erguer bruscamente do sofá, a celebrar um golo marcado ou a lamentar um golo perdido, senti desconforto e sobretudo embaraço pelo absurdo do gesto: eu entusiasmava-me em nome de quê? Dado que não conhecia os sujeitos de calções que passeavam no campo e não partilhava os seus salários, não havia nenhum motivo para partilhar as respectivas alegrias ou desapontamentos. Para cúmulo, conforme orgulhosamente apregoavam, os clubes desportivos haviam-se transformado em empresas, e é escusado viver com dramatismo as oscilações de firmas das quais não possuímos acções. Foi nesse dia que deixei de ser benfiquista.
Não passei por isso a aplaudir outra equipa. Mudar de clube revela fraqueza de carácter e, em determinados países, constitui violação da lei. Apenas deixei de acompanhar a bola com o fervor dos indefectíveis. Aos poucos, desprovido do estímulo competitivo, deixei de acompanhar a bola de todo. Aguentar uma hora e meia de “losangos” e “penetrações” sem envolvimento emocional é o mesmo que apostar na roleta a feijões, ou seja, um disparate.
O problema é que nós podemos largar o Benfica, mas o Benfica não nos larga. Se não custa ignorar os jogos, é impossível escapar incólume à avalanche noticiosa que varre a chamada “pré-época”. Ao contrário da pré-história, onde não acontecia nada, a “pré-época” é que é animadíssima, com a chegada diária (ou a promessa de chegada) a Portugal de espantosos talentos do futebol, logo elevados às manchetes dos jornais da especialidade e a cognomes do tipo “O Prodígio” e “A Fera”. Visto que cerca de 82% dos prodígios e das feras vêm para o Benfica, a cada ano os adeptos ditos “encarnados” antecipam conquistas inauditas e, a julgar pelo nível das transferências, lutas quase desiguais. As aquisições ajudam à euforia: mal aterram na Portela, avisam que o Benfica é o maior, que tem 20 (ou 60, ou 200) milhões de fiéis e que esmagará tudo o que lhe surja à frente.
Depois começa a época de facto e o Benfica, para citar César Monteiro, arrasta-se penosamente pelos relvados. Afinal, o dream team que as manchetes previam demolidor não acerta uma. Num instante, descobre-se que “A Fera” tende para a absoluta inépcia, e que, 15 dias antes de A Bola lhe louvar o génio, “O Prodígio” era um merceeiro do Recife, enfiado à pressa num voo da TAPe vendido ao Benfica por 8 milhões de euros.
Face ao desastre iminente, exposto na abertura dos noticiários e na angústia da “massa associativa”, a reacção da direcção é fulgurante. Rapidamente, definem-se o culpado (o treinador) e o salvador (outro treinador). Os adeptos, que já apontavam uma pistola às próprias cabeças, usam a arma para salvas de júbilo, e rogam, em fóruns televisivos e chats, que se permita ao “presidente” trabalhar à vontade. O exacto “presidente” que escolheu o treinador demitido e estrafegou fortunas em alegados Pelés paira feito um anjo sobre a balbúrdia, anunciando em conferência a “nova era” do Benfica. A imprensa do ramo corre a levar a mensagem e a estampar nas capas o rosto de eventuais reforços. Os devotos, a babar felicidade, cirandam de excitação em volta dos treinos. Até um domingo qualquer os devolver à provisória melancolia.
Não me refiro a ninguém em particular nem sequer a um ano específico. Todos os anos é mais ou menos assim e, sempre, só o próximo é que será o tal. Eu cá estarei para confirmar. Porque não há alternativa e porque, desde que contempladas com distância, estas coisas divertem".
Alberto Gonçalves
Revista Sábado
lindo, disse aquilo que todos pensam, mas nao têm meios de divulgar em publico
A REALIDADE do benfica