[b]O internacional português abre o livro ao i. E conta a sua história em seis capítulos[/b]
Há cinco anos, era um miúdo baixinho e magro que fugia aos revisores dos comboios para ir aos treinos no Real Massamá. Não tinha dinheiro mas agora tem o suficiente para ter o que só antes sonhara ter. Mas quer mais: a titularidade no Manchester United e na selecção. No centro da sala da sua casa nos arredores de Manchester, Nani fala um pouco de tudo, com a linguagem de rua de um puto que nela nasceu, rodeado de bons e maus exemplos. “Fiz boas escolhas.”
I. A INFÂNCIA
Das ruas da Amadora até Old Trafford e à selecção. Sonhava chegar aqui?
É lógico que não. Quando jogamos na rua, pensamos que um dia podemos ser uma estrela. Mas não temos a noção de nada, daquilo que é ser jogador profissional, chegar ao Manchester United e à selecção. Mas as oportunidades foram surgindo e o sonho foi-se tornando real. Agora vivo esse sonho. Mas quando olho para trás vejo que as coisas se passaram muito rápido, a uma grande velocidade.
Depois de uma infância complicada, subiu depressa no futebol e na vida.
Exacto. Foi uma infância complicada e é por isso olho para trás e dou valor a tudo o que tenho por causa de tudo o que passei. Era tudo tão difícil e agora é tudo tão fácil.
Fácil de mais? Pensa que um dia pode faltar-lhe tudo o que conquistou?
Penso muito nisso, em todas as privações e os sacrifícios que fiz para chegar aqui. Ia a pé para o treino [da Amadora a Massamá, para o Real], viajava de comboio sem bilhete porque não tinha dinheiro para o pagar… Tinha de andar a fugir ou a tentar enganar o revisor.
Foi apanhado?
Oh [risos]… tantas vezes. Mas eu tinha habilidade para falar e era sincero: dizia a verdade. “Olhe não tenho dinheiro, a minha mãe não tem dinheiro e eu tenho de ir treinar. É a única maneira que tenho para chegar lá.” Alguns entendiam e deixavam-me passar. Outros nem tanto.
Foi a sua tia que o criou?
Não. Fui educado pela minha mãe, com muitas dificuldades. Mas trocávamos sempre de casa, de um lado para o outro, até aos meus 13, 14 anos. A partir daí, passava a maior parte do tempo na casa da minha tia, porque ficava na minha zona. Até que um dia, a minha mãe teve de ir viver para bem longe e eu optei por ficar ali, pela casa da minha tia. A partir de então fui criado pela minha tia.
E o seu pai?
O meu pai está em Cabo Verde. Estive com ele nas férias. Ele foi para lá quando eu era criança, mas não com intenção de ficar lá. Só que houve um problema com os documentos e acabou por ficar lá. Felizmente agora já conseguiu ir a Portugal. Ou melhor, fui eu que lhe dei a possibilidade de poder viajar.
Como eram os treinos no Real Massamá? Todos dizem que era um miúdo baixinho…
[interrompe] E magrinho! Ninguém dava nada por mim. Mas depois, quando me viam jogar ficavam todos: “Ah… tem muito talento… Mas é magrinho, coitado.” Muitas vezes, eu ia para casa de colegas meus e ficava lá durante uma semana com a família deles.
Para o alimentarem?
Sim, queriam que eu me alimentasse bem e tal, ofereciam-me coisas e gostavam de mim. Porquê? Porque eu era um menino do qual todos gostavam. Era divertido e dava-me bem com todos.
E começou a ficar maior com aquelas sessões de ginásio? Conta-se que fazia poses no balneário.
[gargalhada] É verdade, é verdade. Quando o Real Massamá pôs lá um ginásio, nós começámos a treinar e quando acabávamos, descíamos as escadas e íamos pôr-nos em frente ao espelho para ver quem estava mais inchado, quem tinha mais músculos. Tudo a fazer pose!
Mas quem lhe deu as primeiras bases do futebol foi o seu irmão.
Foi. Ele é cinco anos mais velho e eu andava sempre com ele. Dava-me caldos e não admitia que eu o fintasse quando jogava contra ele [dá um murro com a mão na outra]. O meu irmão, aliás, era um excelente jogador, podia ter sido um grande.
O que lhe aconteceu?
Meteu-se por alguns caminhos.
Que caminhos?
Más companhias e não aproveitou as oportunidades no momento certo. O meu irmão chegou inclusivamente a treinar no Sporting, no Ajax. Mas ele era muito jovem e com 18 anos não teve maturidade para ver mais à frente.
Viu no seu irmão um exemplo a não seguir?
Claro.
Como se manteve fora desses caminhos?
Consegui manter-me afastado com o futebol. Eu adorava futebol. Estivessem os meus melhores amigos onde estivessem, eu queria jogar à bola. Passava o tempo todo no campo. A minha casa era o campo de futebol. Podia passar um dia sem comer só por causa disso.
II. O SPORTING
Sempre foi sportinguista?
Não… [sorriso]. A minha mãe garante- -me que quando era bebé eu dizia: “Golo 'quica.” Queria dizer o quê? Benfica, claro. Os meus irmãos também sabem essa história toda. É verdade, era do Benfica. Só que esse tal meu irmão mais velho era do FC Porto, ferrenho. Ainda hoje é. E o FC Porto na altura estava a ganhar os campeonatos todos! Bom, há um ano em que o FCP ganha o título, faz-se uma grande festa lá na minha zona: o meu irmão e os amigos, com grandes bandeiras do Porto. E eu à porta de casa ouvia o meu irmão: “Muda para o Porto, Nani. Estás a ver? Estás a ver? Ninguém aqui é do Benfica. Anda burro.” E eu, olhe, mudei para o FC Porto. Juntei-me a eles e fiquei do FC Porto até aos 17 anos. Só troquei para o Sporting quando comecei a jogar lá nos juniores. Com aquela rivalidade dos jogos, a disputa, eu fiquei mesmo sportinguista. Do coração [agarra o peito com a mão].
Mas chegou a fazer testes no Benfica.
Sim, cheguei a treinar no Benfica.
Que correu mal?
Nada, nada. Eu fiz testes no Benfica e também no Sporting. Sem ninguém saber eu estava à experiência no Benfica… Eu treinava à terça-feira no Benfica e quarta e quinta no Sporting. Ninguém sabia. Estava a tentar orientar-me. O Manuel Fernandes [ex-Benfica], que é muito meu amigo e estava lá no Benfica, perguntava-me como iam as coisas: “Então, Nani? Não te dizem nada?” E eu dizia-lhe: “Estão muito contentes comigo mas não me disseram para assinar.” Houve muitos jogadores que assinaram, o Manuel Fernandes, o [João] Coimbra. Mas eu também treinava no Sporting porque tinha lá um amigo meu, que é como um irmão: o Sabino. No Sporting, diziam-me que eu não ia ficar, porque era muito pequeno e tal, mas que me deixavam fazer a pré–época. E eu disse que sim, que fazia a pré-época que começava num dia 3. Só que, na mesma altura, ligam-me do Benfica e dizem-me que me queriam para a pré-época, também no dia 3. O que fiz eu? Disse que sim aos dois [risos]. Mas só fui à do Sporting no dia 3, mesmo sabendo que podia não ficar. Mas evolui, evolui e acabei por ficar. A partir daí foi sempre a crescer.
Com alguns momentos menos bons pelo meio, como a fase dos assobios.
Foi uma fase má. Cada dia que ia para um jogo pensava que não conseguia. Pesavam-me as pernas. Os adeptos estavam mal habituados. Eu não era um goleador, um Liedson. Na primeira época, fiz um bom trabalho. Na segunda, comecei muito bem, a marcar golos, a oferecer vitórias como a do Nacional na Madeira. Mas depois a equipa começou a baixar de rendimento, por causa do relvado também, e começaram a cair em cima de mim. Vieram os assobios e eu caí na depressão: não conseguia fazer absolutamente nada.
E o desentendimento com Custódio?
Foi assim: era uma semana em que eu estava a treinar de uma forma espectacular. Ouvia o Paulo Bento: “Isso, Nani, isso! Espectáculo.” Só que, dois dias antes do jogo, sofro um toque no joelho num treino e no último treino da semana, quando sai a convocatória, eu não estive tão bem e ouvia algumas bocas, que eu estava a relaxar. Depois, nessa sessão, o Paulo Bento fez-me trocar de colete com o Carlos Martins e fiquei a exercitar-me com os suplentes. Percebi que não ia ser titular e fiquei com azia. Deixei de passar a bola, a querer fintar tudo e todos e a perdê-la de forma estúpida. Há um lance em que a bola vai adiantada e o Custódio entra de carrinho e eu piso o gajo de propósito. Houve bate- -boca. O Paulo Bento vira-se para mim e diz: “Acabou!” E eu: “chiça penico!, ele é que está a falar, não sou eu.” O mister disse–me para pegar nos calçõezinhos e ir para o duche. E pronto.
III. O MANCHESTER
Quando é que surgiu o interesse do Manchester United?
Foi depois dessa fase. Recuperei a confiança e fiz um excelente final de época. Havia olheiros a verem-me e o meu empresário [Jorge Mendes] foi-me comunicando as coisas. Eu não queria sair, nem pensava nisso. Estava a crescer no Sporting, não tinha conquistado nada, nem o meu espaço na equipa. Depois, vou para a selecção e os rumores cresceram ainda mais. O Jorge Mendes veio então falar comigo e disse-me que o Manchester United estava interessado. E eu tenho de olhar pela minha carreira, não é? Se surgir um clube de top, eu vou, apesar de ser adepto do Barcelona.
Depois foi viver com Cristiano Ronaldo em Manchester, na casa dele.
É verdade, é verdade! À partida, a ideia era viver num hotel. Fiquei lá uns tempos, mas o Ronaldo, depois, pediu-me para ir viver com ele, que seria melhor.
Pediu-lhe a si e a Anderson (ex-FC Porto), não foi?
Sim, sim.
Boa-vida, não? Três miúdos novos a viverem numa casa.
[risos] Foi fantástico. Uma piscina, um campo de ténis. Andávamos sempre em competições uns contra os outros, a ver quem ganhava mais.
E quem ganhava mais? Fala-se de grandes duelos de pingue-pongue entre Nani e Ronaldo.
O Ronaldo ganhava mais. Por acaso tenho de dar-lhe mérito porque o gajo joga muito bem [risos]. Mas, atenção! Ele sabe que é equilibrado e comecei a recuperar a minha condição técnica [gargalhada]. É muito taco a taco!
Quem é o melhor jogador do mundo, actualmente?
Temos de ser sinceros, o Messi. Depois de tudo o que fez na época passada. Como o Cristiano tinha sido antes.
IV. ALEX FERGUSON
Como é Alex Ferguson?
É um gajo muito complicado, muito complicado. É duro. Se está tudo bem, está tudo bem. Mas se há alguma coisa que ele pense que está mal, está tudo lixado. Tanto te põe lá em cima como te arrasa no momento seguinte.
Já aconteceu isso consigo?
Então não? [sorriso] “Oh Nani, como é possível falhares isso!”
E grita com o jogador à frente de todos?
À frente de todos! E ninguém escapa ali, são todos iguais.
Mesmo Giggs e Neville?
Esses levam mais. Porque têm mais experiência. E é com “fuck” para a frente, “fuck” para trás.
Com a saída de Ronaldo, a pressão aumentou para o seu lado?
As pessoas esperam mais de mim mas não é fácil. Também não estão a fazer aquilo que disseram que iam fazer. Se calhar podia estar melhor, com mais golos. Imagine: faço um jogo espectacular hoje mas no jogo a seguir ninguém me garante que vá ser titular. A confiança quebra-se.
Acha que estão a gerir mal a sua carreira no clube?
Agora acho que sim. Mas também ainda é cedo e sei que falta muito campeonato. Só que não joguei os encontros importantes, como contra o Liverpool, o Manchester City ou o Tottenham. Não jogando esses jogos, fico um bocado triste, sim. E também estou meio tocado num pé, por isso vamos ver se as coisas melhoram daqui para a frente.
Pensa sair do Manchester United se continuar insatisfeito?
Não, não. Para já não penso nisso.
V. A SELECÇÃO
Custa-lhe ser suplente na selecção?
Nada de especial. Mas também não estou muito contente. Acho que devia ser titular há muito tempo, seja quem for que esteja lá. Não sei porque não jogo.
O Ronaldo será sempre titular, pelo que o seu lugar está tomado por Simão.
Simão, sim. Ou outro jogador porque não é só ele que tem jogado. Até porque houve uma mudança táctica na selecção [do 4x3x3 para o 4x4x2 losango] e eu quando comecei a jogar futebol era médio. Aliás, conheço essa táctica melhor do que ninguém. Joguei a interior esquerdo no Sporting ou mesmo a número 10. Não se justifica que não jogue. Ainda para mais quando elogiam a forma como treino. Toda a gente me faz festinhas na cabeça mas depois fico no banco. Costumo ouvir: “Nani, amanhã prepara esta posição. Se for preciso, entras para acelerar o jogo.” Mas e se não for preciso acelerar o jogo? Fico no banco? Eu devo ser titular, sem dúvida. Sou humilde, muito humilde, e pago por ser assim, abusam. Mas talvez tenha de começar a agir de forma diferente, como outros agem, de forma parva. Não estou a falar de nenhum em especial, mas a verdade é que quando um jogador se afirma, com atitude, ninguém abusa dele.
Está a falar de quem?
Ninguém em particular. Só peço que me ponham a jogar quando merecer isso. Quando estiver mal, estou mal e sou o primeiro a ficar no meu canto. Cheguei a ser o melhor marcador da fase de qualificação de Portugal, mas esquecem-se disso. Quem não joga não marca. Se me metem de fora, não dá.
Acha que a selecção vai ao Mundial?
Claro que sim e até podemos ganhar. Há muitas selecções que chegam aos campeonatos em situações-limite e depois conquistam o troféu. E nós temos um grupo muito forte, de jogadores fantásticos. Mas falta alguma atitude, sermos mais fortes. Contra a Dinamarca, fomos sempre superiores mas não ganhámos. Agora, contra as equipazinhas fracas não podemos ir lá a pensar noutra coisa que não ganhar. Temos de atacar.
VI. A CRISE LEONINA
Continua seguir a carreira do Sporting?
Claro, claro. Acompanho os jogos pela televisão sempre que posso.
E a falar com Yannick e Veloso?
Sim, sim. O Yannick até me mandou uma mensagem, preocupado, porque pensava que eu podia ter partido o pé com aquele lance que me lesionou há pouco tempo. Sou amigo dele.
E a actual situação do clube?
Isto são fases que acontecem no Sporting. Só que esta fase é a pior, nem quando eu estava lá aquilo chegou ao ponto em que está agora.
E viu as imagens dos tiros, da polícia e das pedradas?
Vi, vi. Mas também passei por isso! Lembro-me de querermos sair do estádio e os adeptos lá fora a mandarem pedras e outras coisas. Está bem, está! E as esperas na Academia, com ameaças, diziam que nos iam matar e não sei o que mais. Olhe. Pensando bem, essa fase se calhar até foi pior do que a actual! [gargalhada]
Aqui nunca irá ter essa experiência.
Não, nunca. Os adeptos em Inglaterra são fantásticos. Podes estar a perder e a jogar mal que eles continuam a bater palmas. Temos sempre a confiança deles, sempre.
Fonte: [url]http://www1.ionline.pt/conteudo/32230-nani-na-seleccao-fazem-me-festas-mas-depois-vou-o-banco[/url]