Esta tem mesmo que ser trazida para aqui!
Ser benfiquista
Sou do Benfica. Mais precisamente, o sócio efectivo n.º 46095 (com as quotas em dia). Mas reconheço que nos últimos anos o meu fervor pelo Benfica quase desapareceu. Em rigor, o que minguou primeiro foi o meu fervor pelo futebol. Sempre me interessei pela modalidade apenas pelas actividades praticadas dentro das quatro linhas. Lesões, transferências, federações e arbitragens causam-se uma profunda exasperação. E de há anos para cá, o jogo jogado é uma pequeníssima parte do fenómeno. Mas não vale a pena fugir à questão: o Benfica não ganha um campeonato há dez anos, e o futebol interessava-me essencialmente por causa do Benfica. Primeiro a identidade, depois o desporto. Essa diminuição de fervor futebolístico e clubístico levou-me a uma situação bizarríssima e, dizem os meus amigos, impossível: sou um adepto racional. Agora vejo, claramente visto, o arraial de mitologias, exageros e tristezas que rodeiam o Benfica. E não gosto. Dou quatro exemplos.
os «seis milhões». Não faço ideia se o INE fez trabalho de campo, ou se a estatística é de café de bairro, mas os famosos «seis milhões» de benfiquistas parecem-me um mito pacóvio. Que existem mais simpatizantes do Benfica do que de qualquer outro clube português prova-se pelas audiências dos jogos televisivos e pelas vendas dos jornais desportivos com manchetes benfiquistas. Mas «seis milhões»? Admitindo que os quatro milhões sobrantes sejam do FCP, do Sporting e dos demais, isso implicaria que todos os portugueses têm interesse por desporto, o que não é de todo verdade (sobretudo no caso das mulheres e das novas gerações). Os «seis milhões» são uma cifra mítica, que apenas serve para frases demagógicas em época de escassez vitoriosa. Além do mais, esse número é irrelevante: com seis milhões de adeptos ou seis mil um clube tem os mesmíssimos direitos e a mesmíssima dignidade.
as arbitragens. Não compreendo que os benfiquistas se queixem das arbitragens. O Benfica é por vezes (cito) «roubado»? Com certeza. Mas também é muitas vezes beneficiado e mesmo levado ao colo. O que acontece é que o Benfica não tem o peso hegemónico de outras décadas, e que a ascensão do FC Porto lhe trouxe, como é infelizmente natural, arbitragens mais favoráveis. Nunca dei por épocas estragadas pelas vilãs arbitragens, e aborrece-me o contínuo e infundado queixume dos benfiquistas sempre que não ganham os jogos. Não é a arbitragem: é a equipa, estúpido.
os presidentes. O pessoal dirigente do futebol está entre o mais rasca que por cá se produz em termos de recursos humanos, mas um clube centenário como o Benfica não podia ter entrado nesta sucessão de presidentes medíocres e nulos (na melhor das hipóteses) ou bimbos e vigaristas. Quando o Benfica perde, tenho pena; mas quando ouço certos dirigentes do Benfica, tenho vergonha.
a glória. O Benfica tem um palmarés nacional brilhante. Tem o recorde de campeonatos nacionais. Ganhou duas Taças dos Campeões Europeus. É um clube conhecido na alta roda do futebol. Mas a glória futebolística do Benfica lembra a glória patriótica das caravelas: foi há tanto tempo que não faz sentido evocar o feito a toda a hora. O Benfica de hoje não é o Benfica de Eusébio, e provavelmente nunca mais voltará a ser. O Benfica podia aspirar a ser «o melhor clube europeu» nos anos 60. Mas que alguém faça uma menção desse género sobre o Benfica actual parece-me atrozmente embaraçoso. O Benfica é um dos dois ou três melhores clubes de um campeonato mediano, o que faz com que seja internacionalmente uma equipa mediana. Fazer de conta que isso não é assim redunda em lamentáveis ilusões.
Espero que o Benfica possa recuperar da fase comatosa em que se encontra, e que de novo dê aos seus adeptos motivos de orgulho. Mas estes anos de lucidez ficarão como lembrança perene de que o ridículo _ no futebol e em tudo _ mata.