Pereira no trapézio
João Pereira tem na promoção à equipa principal do Sporting a oportunidade de uma vida. Passar da Liga 3 para o escalão principal é como saltar para um trapézio em movimento. Falta ver se tem rede.
António Tadeia
nov 12, 2024
A forma como toda a equipa do Sporting se uniu a Ruben Amorim num abraço coletivo que chegou a ser violento, de tão expressivo, depois do último dos quatro golos a completar a virada em Braga, no domingo, é a maior de todas as garantias à disposição de João Pereira como sucessor do treinador que partiu para Manchester. Porque o que está ali bem à vista é tanto a relação daquele grupo de jogadores com o técnico que já se foi como a certeza de que eles adoram ganhar. E todos eles sabem que, para continuarem a ganhar, terão de manter o espírito de grupo, a rede protetora do novo técnico no momento em que salta para apanhar o trapézio em movimento que é o comando da equipa. Mais do que à convicção já antiga de Frederico Varandas na escolha, à cada vez maior vulgarização da competência técnica, que é permitida pela disseminação do “saber fazer”, à constatação das semelhanças e das diferenças entre as maneiras de jogar da equipa principal e dos B, que eram comandados por Pereira, ou à certeza de que tantos anos de balneário ao mais alto nível terão de tê-lo transformado num conhecedor das suas dinâmicas, é a esta rede de proteção que tem de se agarrar o treinador ontem confirmado como substituto de Amorim. Enquanto aqueles jogadores se lembrarem de como gostam de ganhar e acreditarem que ele pode ajudá-los nisso, ele está safo. Quando e se isso deixar de acontecer, é sinal de que terá fracassado e que nada lhe restará a não ser dar o lugar a outro.
Voltou ontem à vida uma entrevista de Varandas ao Canal 11, em 2020, com o reaparecimento de um excerto em que o presidente do Sporting dizia que tinha a certeza de que João Pereira ia dar treinador. Portanto, quer a escolha agora dê resultado ou não, uma coisa é certa: não foi feita de ânimo leve. A designação do sucessor, a quem o Sporting fez logo um contrato de dois anos e meio – e se fosse só para lhe dar a força que ele nunca teria com um mero vínculo até ao final da época, quase com a certeza de que se não fosse campeão ia embora, bastaria juntar mais um ano – foi resultado de uma convicção que já tem mais de quatro anos. E, na verdade, a convicção é tudo o que um gestor pode ter numa situação como esta. Varandas já estaria igualmente convicto quando demitiu José Peseiro para contratar Marcel Keizer. Da mesma maneira que há-de ter sido por convicção que escolheu Jorge Silas e, depois, Ruben Amorim. De todos, o único que se saiu bem foi este último, curiosamente aquele que tinha menos experiência, com um par de meses apenas na Liga 3 e outro tanto à frente do SC Braga, onde chegou no dia em que António Salvador também há-de ter tido a convicção de que seria melhor despedir Ricardo Sá Pinto e promovê-lo dos B para a equipa principal. Há um perigo aqui, que é o da desvalorização sistemática da experiência e da qualificação profissional no processo de escolha – como o Amorim de então, o João Pereira de hoje também não tem o quarto nível e não poderá surgir como treinador oficial nas fichas e nas flash-interviews. E o que o sucesso de Amorim nos diz não é que um treinador seja tanto melhor quanto menor for a sua experiência. É simplesmente que não tem de ser melhor ou pior somente por causa disso.
A questão à qual só Varandas poderia responder – mas na verdade nunca o fará com franqueza total, porque isso o exporia a ele e ao técnico – é em torno das razões que o levaram a ter esta convicção de que o sucessor ideal para Amorim seria João Pereira. Ontem, o novo técnico chegou a falar acerca de uma das hipóteses mais aventadas: a de ter estado a fermentar num caldo de cultura semelhante, de ter ideias aproximadas às do antecessor, de ter mesmo sido recomendado por ele, num ato de reforço positivo em momento de despedida, de a sua falta de passado poder conduzir a uma menor vontade de mudar seja o que for numa equipa que funciona bem e que precisa de se agarrar ao que de bom tem feito esta época. Às semelhanças e diferenças entre o futebol da equipa principal e dos B voltarei oportunamente, porque há uma base comum mas também algumas questões dissonantes, que têm que ver com os posicionamentos e as caraterísticas individuais dos jogadores de um e do outro lado. O que João Pereira garante é que o seu “maior erro” seria “querer imitar alguém”, mas que também seria um erro “querer mudar tudo”. O que se percebe é que está a patinar em gelo fino: não pode dizer que, sim, vai ser um mero replicante, porque isso o diminui na sua autoridade, mas ao mesmo tempo também não pode fazer uma afirmação forte de identidade, porque isso lhe coloca em risco a base de apoio, que são os jogadores, plenamente felizes e satisfeitos com o que fizeram debaixo da liderança anterior.
O sucesso ou insucesso dos treinadores no futebol de hoje já tem muito mais a ver com as competências sociais e humanas do que com as técnicas, mais com a capacidade para terem o grupo na dose certa de felicidade do que com a competência técnica para operacionalizar os processos, escolher os onzes, definir as táticas e as estratégias. Tudo isto continua a ser terrivelmente importante, não me compreendam mal. A questão é que a popularização do conhecimento e as facilidades permitidas pelas plataformas de observação levam a que, a um certo nível, só não cresça nestes aspetos quem não quiser fazê-lo ou quem não trabalhar para tal. O próprio Amorim dizia que o facto de haver jogos de três em três dias era mau porque tirava aos grandes treinadores – “aos Guardiolas, aos De Zerbis”, que foram aqueles que ele identificou como referências, ainda que no seu jogo haja muito de Gasperini – o tempo para criarem coisas novas que ele depois pudesse copiar. A globalização trouxe-nos uma aceleração vertiginosa do processo de uniformização tática, porque esta deixou de depender das grandes provas, dos Mundiais e dos Europeus, como ponto de partida fundador da inovação. E o facto de a nova equipa técnica do Sporting ser globalmente muito jovem, com dois sub30 e mais três sub40 em nove elementos, pode ser visto como uma boa notícia, porque muitas vezes à juventude está associada uma sede de conhecimento que os mais velhos rejeitam, seja por convicção ou por falta de atualização. A questão é que, ao mesmo tempo, esse excesso de juventude pode ser um tema na relação com o grupo – e é aqui que João Pereira vai ter de divergir daquilo que foi feito pelo ainda mais jovem Ruben Amorim.
Quatro anos e meio depois, o momento fundador da liderança de Amorim em Alvalade pode hoje ser identificado como o caso do colete GPS de Mathieu. Nessa sexta-feira de Junho de 2020, ao terceiro jogo, em casa contra o FC Paços de Ferreira, o treinador abdicou de início do defesa francês e de Battaglia. Durante a partida, que ganhou a sofrer, acabou por substituir Vietto (por lesão), Acuña e Wendel. Tirando Coates, eram todas as estrelas daquele plantel. Mas Amorim chegava para mudar uma realidade que era vista como amplamente negativa. João Pereira entra num grupo que funciona e não pode intervir pelo choque. Não lhe passará pela cabeça pôr em causa o que existe, abdicar da rede de proteção que é ter um plantel capaz de agarrar-se ao que vem de trás e isso obrigá-lo-á, a ele e à sua jovem equipa técnica, a adotar uma perspetiva mais conservadora do que progressista. Se isso é possível é o que nos dirão os meses que aí vêm.