Ensaio Sobre a Imbecilidade

Não há nada - excepto, talvez, um golo do Benfica ou o close-up do Pedro Guerra com saliva ao canto da boca - que me entre tão directamente nas veias, que me tire tão violentamente do sério, como o sistema de cotas. Porque o sistema de cotas é, tão simples quanto isso, a anulação de toda e qualquer presença de mérito numa escolha. E uma escolha que não é decidida por mérito não é uma escolha; é uma imbecilidade. Reduzir pessoas a simples características (sexo, crenças, clubes) é idiota. E só alguém idiota o pode defender.

É sobre essa imbecilidade que esta prosa - que já vai longa para o usual nestas coisas, vorazes e velozes, da Internet - se debruça. Mais concretamente: na transposição, clara mas não assumida, dessa imbecilidade para algo que, parecendo que não, é mais político do que futebolístico. Refiro-me, como alguns já terão percebido, à Selecção Nacional; mais concretamente: às escolhas dos seleccionadores nacionais. Vamos a isto.

É, para mim, evidente: há um sistema de cotas tácito nas escolhas de Fernando Santos, de Rui Jorge e de todos os técnicos das Selecções Nacionais de futebol – como havia um sistema de cotas tácito nas escolhas de Paulo Bento e de todos os outros técnicos que por lá andavam no tempo dele. Não sou eu quem o diz; são as evidências. Sim: os factos. E os factos, desgraçados, falam normalmente por si. Bastará um olhar atento – ou até desatento, verdade seja dita – para perceber que há um número de lugares reservado a cada esfera. Temos, então, um número de lugares reservado a jogadores que actuam além-fronteiras, um número de lugares reservado a atletas do Futebol Clube do Porto, um número de lugares reservado a atletas do Sporting Clube de Portugal, um número de lugares reservado a atletas do Sport Lisboa e Benfica. E, claro, um número de lugares reservado ao Cristiano Ronaldo e aos seus amigos mais próximos. Mas tergiverso.

É precisamente neste número de lugares reservado que a porca torce o rabo. E porque é que a marota o torce? Por uma razão muito simples: há, como é natural, clubes que, para cumprir essa cota, têm de ver atletas seus, que claramente mereciam ser escolhidos, não o serem; e há, pelo contrário, clubes que “têm” de ver atletas seus, que claramente não mereciam ser escolhidos, serem-no. Mas tem de ser. Em nome da política, em nome da harmonia, em nome do raio que os parta. E só assim se explica que clubes que estão na liderança do campeonato e que jogam habitualmente com seis e sete portugueses tenham na Selecção Nacional o mesmo número de jogadores de equipas que estão em quarto lugar e que jogam com um ou dois portugueses no onze titular. E assim cada vez mais ser da Selecção é como ser do PSD ou do PS ou do PP: uma decisão política, baseada em política, feita para a sobrevivência política. E por isso politicamente – mesmo que tecnicamente e desportivamente incorrecta – correcta. E assim se promove uma anti-meritocracia gritante, que só não tem consequências porque nada, bem vistas as coisas, tem consequências no futebol português – a não ser que seja feito pelo Sporting e, para tocar mais directamente na escavacada ferida, por Bruno de Carvalho. Creio, até, que haverá uma cota de multas e de castigos reservada para o Presidente do Sporting. A mim, como sócio e adepto, resta-me fazer ouvir a minha voz, fazê-lo sentir que é a nossa voz, e, sempre que possível, ajudá-lo (nada como pagar as quotas para combater as cotas) a pagar essas multas. Até que a vergonha acabe.

Excelente texto!! Os resultados da selecção nacional são prova do que o texto descreve. Só faltou aprofundar as razões das ditas cotas ou qual a motivação dos vários selecionadores para manter este status quo.