Apologia do Caos
Breve consideração sobre o momento actual do clube sob a perspectiva da Segunda Lei da Termodinâmica
É mais forte criar uma flor do que destruir um Império – Vergílio Ferreira
Num momento do clube em que uns clamam por mudança, outros argumentam que a mudança não surge por si só e recusam-se a provocar a queda do status quo sem a garantia de uma alternativa, tremendo que nem varas verdes perante a possibilidade de o poder cair na rua e se instaurar o caos e a desordem no clube. Tentarei com este post mostrar como o caos não é necessariamente uma coisa má e como o medo generalizado que as pessoas têm pelo caos pode ser não só injustificado, como contraproducente. Para tal dividi este post em duas partes: na primeira faço uma alusão ao caos nas suas diferentes manifestações naturais e na segunda, escrita para o caso improvável de haver sobreviventes à primeira, tentarei fazer uma analogia com o momento actual do clube. Na terceira parte rematarei o texto com a conclusão que tiro das duas partes anteriores.
1) A Segunda Lei da Termodinâmica, assim mais ou menos
Como é do conhecimento empírico, há processos que ocorrem de forma espontânea e outros não. Um cubo de gelo derrete espontaneamente ao Sol, mas um copo de água não congela espontaneamente. Uma bola rola livremente por uma encosta abaixo, mas não subirá espontaneamente. Uma molécula complexa (ex: um polímero) tende a degradar-se nos seus elementos básicos, mas os seus elementos básicos não se agruparão espontaneamente para formar nova molécula. Um gás tenderá a ocupar todo o espaço disponível do recipiente onde está, mas não se acumulará num ponto específico desse mesmo recipiente. Estes processos ocorrem espontaneamente porque atenuam as diferenças (de pressão, de temperatura, etc) do sistema em que ocorrem levando o sistema ao equilíbrio. Ao contrário dos respectivos processos reversos, não exigem uma concentração de energia térmica ou um movimento coordenado de átomos: moléculas de água no estado líquido não constituirão um cristal de gelo se estiverem excitadas devido à temperatura alta; os átomos da superfície onde a bola está pousada não irão efectuar um movimento ordenado que permita enviar a bola de novo para cima; moléculas de um gás não se irão concentrar numa zona específica de um recipiente, etc.
Parece então que são espontâneos os processos que estão associados a um aumento da aleatoriedade dos movimentos e desorganização moleculares do Universo, o que acaba por ser ao mesmo tempo causa e consequência do facto de que um sistema tende a ver atenuadas as diferenças nele existentes - de pressão, temperatura, etc- até atingir um equilíbrio (no entanto os anti-liberalistas continuam a achar que isto só lá vai com a intervenção do Governo, não é Paulo Duarte? :twisted: ). Cromos houve que estudaram isto experimentalmente, e foi assim enunciada a 2ª Lei da Termodinâmica que, grosso modo, e entre outras coisas, diz que a entropia (a tal desordem ou caos) de um sistema que não esteja em equilíbrio, tende a aumentar com o tempo no decurso de mudanças espontâneas.
Perguntam agora os que ainda não adormeceram: se a entropia de um sistema tende a aumentar, como é que se justifica a existência e perpetuação de estruturas complexas como os organismos vivos? Como é que se justifica que as plantas consigam montar moléculas complexas como um açúcar, a partir de moléculas simples como o dióxido de carbono, realizando processos que não são espontâneos? Resposta: porque esses processos, apesar de serem termodinamicamente desfavoráveis (não espontâneos), estão acoplados a processos que são termodinamicamente favoráveis (espontâneos) que viabilizam os primeiros.
Exemplo:
Suponhamos que um organismo vivo precisa de adicionar uma molécula de fosfato a uma molécula de glicose, para formar Glicose-fosfatada para ser usada num determinado processo biológico. Ora, o processo pode ser esquematizado da seguinte forma:
Glicose + Fosfato → Glicose-fosfatada + H2O
Esta reacção implica o consumo de 3,3 kilocalorias por cada unidade de peso molecular, isto é, a absorção de energia do meio que é usada na forma de “trabalho” para “montar” ou organizar as duas moléculas daquela maneira específica. Ora, se esta reacção chupa energia ao meio, contribuiria para a diminuição da entropia do meio porque menos energia estaria disponível para manter a aleatoriedade e desorganização moleculares do meio, e portanto não será espontânea, como diz a 2ª Lei. No entanto, esta reacção é precedida duma outra (de uma forma tão intimamente associada no tempo e espaço que ambas se dizem acopladas): a hidrólise de uma outra molécula chamada ATP, a qual é esquematizada da seguinte forma:
ATP + H2O → ADP + Fosfato.H2O
E que significa que uma molécula de ATP reage com água, perdendo um fosfato (ficando ADP). Ora esta reacção por sua vez, é espontânea, libertando para o meio 7,3 Kilocalorias por unidade de peso molecular e contribuindo para o aumento da entropia do meio. Daqui resulta que se combinarmos as duas reacções, parte da energia que é libertada na primeira será usada na forma de trabalho para conduzir a segunda, que não era espontânea. E assim, as duas reacções combinadas darão:
ATP + H2O → ADP + Fosfato H20 -7,3 kcal/mol
Glicose + Fosfato → Glicose-fosfatada + H2O 3,3 kcal/mol
Glicose + ATP → Glicose-fosfatada + ADP -4,0 kcal/mol
O que se traduz num balanço global que é a libertação de 4 Kilocalorias por unidade de peso molecular para o meio, energia essa que vai aumentar a entropia do meio. Ou seja, o que tornou possível, ou o que conduziu a montagem e organização de duas moléculas (uma de fosfato e outra de glicose) em uma única de Glicose-fosfatada no sentido mais improvável, acabou precisamente por ser uma outra reacção que leva ao aumento de entropia do meio. A reacção da fosforilação da glicose é apenas um exemplo de entre os milhares de reacções que ocorrem num organismo vivo e que, apesar de não serem espontâneas em primeira instância, acabam por ser conduzidas pela desordem do meio, possibilitando a existência de estruturas complexas e organizadas como a Vida.
Poderá então deduzir-se, por paradoxal que possa parecer, que é o aumento de entropia do Universo que permite a geração de ordem: sem Caos não haveria ordem. E é por isso que devemos celebrar o Caos. Se não houvesse Caos, também não haveria estrelas, não haveria planetas, não haveria cristais, não haveria vida, não haveria música, não haveria Mafalda, não haveria nada. Se não fosse o Caos e a 2ª Lei da Termodinâmica, todo o Universo seria igual, homogéneo, amorfo e sem piada. No fundo o Caos é a origem de toda a Criação.
E agora perguntam os que ainda não espetaram um garfo no olho: então mas se a entropia de um sistema tende a aumentar, e se o Universo é, ele próprio um sistema, não tenderá esta merda toda para o Caos? Não se sabe. Aquilo que se sabe é que a 2ª Lei da Termodinâmica é válida para o Universo actual, mas poderá não o ser para um Universo em fase terminal ou inicial. Contudo podemos especular, pelo que se os sistemas tendem a ver atenuadas as suas diferenças e atingem espontaneamente o equilíbrio, e o Universo tende para o Caos, vislumbro aqui duas hipóteses:
a)o equilíbrio Universal é atingido pela coexistência dinâmica entre o Caos extremo e a Ordem extrema (ex: dum lado um cristal super-organizado, do outro lado um buraco-negro caótico)
b)o equilíbrio é atingido através dum Universo estático e previsível, com um grau intermédio de ordem/desordem uniformemente distribuído no tempo e no espaço (i.e. tudo uniforme em toda a parte, para todo o sempre)
E é precisamente esta dualidade que, transposta para a condição humana, coloca o bípede perante um dilema fundamental: seremos apologistas de uma existência irregular e imprevisível, em que coisas muito boas podem alternar com coisas muito más, ou seremos antes apologistas de uma existência regular e previsível, em que nada de muito mau acontece, mas nada de muito bom também não acontece?
Transpondo este dilema para uma situação ainda mais prática:
2) O momento actual do Sporting, assim numas linhas
Será que preferimos a meia-alegria de ver o Clube ficar dois anos seguidos em 2º lugar, ou será que preferimos a alegria plena de ver o Clube ficar num ano em 1º mesmo que isso implique ficar em 3º no ano seguinte?
Será que quando cruzamos o torniquete de Alvalade vamos à espera de ver um bom espectáculo de futebol, mesmo que isso implique o risco de perdermos o jogo, ou será que preferimos o futebol monótono que nos garante os 3 pontos, mesmo que isso implique bocejar durante 90 minutos?
Há uma dúzia de anos os sócios do clube foram confrontados com a ideia de SAD. Sedentos de conquistas após uma travessia no deserto que durava há 15 anos e cada vez mais resignados com uma suposta sina que parecia exclusiva do clube, aos sportinguistas soaram como música nos ouvidos frases do género “a sustentabilidade e sucesso do clube não mais ficarão dependentes de uma bola bater na barra” e deu-se carta branca para avançar com o denominado Projecto Roquette. Sob a batuta da gestão racional e virada para os números, procedimentos e organização que poucos tinham a capacidade de compreender, desmultiplicou-se o clube numa complexa teia de entidades que ficaram nas mãos de um grupo extenso – mas restrito - de pessoas. No meio de tanta avidez por organização, previsibilidade e racionalidade, esqueceu-se que o futebol e – mais importante que tudo – o clube, vive dos seus sócios e adeptos; e que a relação entre estes e o clube move-se na órbita da paixão e da emoção, mais do que na da razão.
O Projecto Roquette falhou em toda a linha, com os resultados e consequências que toda a gente conhece e que acabaram por transformar toda a suposta organização e complexidade em meia-organização e meia-complexidade. Tão ou mais grave do que isso, foi o desprezo a que foi votada a componente emotiva por oposição à componente racional – não interessa agora se foi por falta de jeito ou por conveniência – e que nunca proporcionou uma conciliação saudável e possível entre ambas. De tal modo se desprezou a componente emotiva e de tal modo falhou a organização que o Sporting, à semelhança do 2º Universo referido atrás, se converteu numa coisa com um grau intermédio de ordem/desordem, uniforme, estática e previsível. Uma coisa desinteressante e sem vida. Um desinteresse que atravessa todos os aspectos da vida do clube. Desde à previsibilidade e monotonia do futebol de Paulo Bento, até à previsibilidade e monotonia dos resultados e conquistas. Desde a falta de emoção, para o bem e para o mal, que desmobiliza os adeptos, até à falta de emoção dos próprios dirigentes que na mesma semana que apontam o dedo aos adeptos pela crise de militância, falham um jogo da equipa de futebol para ir jogar golfe. Ganhou-se em rigor orçamental, perdeu-se em paixão. Ganhou-se em estabilidade financeira da SAD, perdeu-se em conquistas. Ganhou-se em receitas de bilheteira no início de época, perdeu-se em arrastar de multidões para um jogo grande. O discurso dos dirigentes, treinador e jogadores é sempre o mesmo, o futebol é sempre o mesmo, o interesse nos jogos é sempre o mesmo, as conquistas são sempre as mesmas, o sentimento na vitória ou na derrota já é sempre o mesmo.
Pois bem, eu, que falo por mim, estou cansado deste equilíbrio estático a que chegou o clube. Não quero mais este Sporting amorfo e vazio de sentimento. E por isso sou apologista de um momento caótico que me traga de novo o Sporting que aprendi a gostar, daquele Sporting que me fazia ficar colado à TV, ao rádio ou aos jornais, que tão depressa me deixava em eufórica alegria como em profunda tristeza e irritação. Da mesma maneira que à síntese de uma biomolécula complexa está associado um aumento do caos no Universo, à edificação dum Sporting mais vivo e forte terá que se associar um momento caótico até que se estabeleça um novo equilíbrio. Sinto que tem que ser atirada uma pedra no charco da indiferença, agitar as águas, destruir pela raiz o status quo que se instalou no clube e o esvaziou. Sinto que tem que haver um momento de caos e não tenho medo dele, porque ao caos seguir-se-á a ordem e as coisas bonitas. Não sou eu que o digo, é a equação da 2ª lei da Termodinâmica:
3) Palavra de ordem: Caos
Por isso faço votos que temporariamente se metam as críticas à “falta de elevação” num lugar onde o sol não brilhe e se deixe tomar conta de nós o desejo por outra elevação, que essa sim é aquela que continua por concretizar: a elevação do Sporting Clube de Portugal a um clube tão grande como os maiores da Europa. E o caminho para que isso aconteça, passa primeiro por criar o caos e depois restaurar a ordem, tal como à criação de caos pela dissociação do ATP sucede a criação de uma bela glicose-fosfatada. À crítica destrutiva seguir-se-á inevitavelmente a crítica construtiva (aliás até esta já é levada a cabo). Não é altura de primar pela elevação, porque a elevação de posturas e procedimentos tão habitualmente apregoada é a mesma elevação de que o poder instituído se vai servindo como escudo para sub-repticiamente tirar a voz e poder aos sócios e levar por diante os seus intentos.
E por isso, tendo perfeita noção do que vou dizer a seguir, sem vergonhas, sem tabus, porque nunca fui nem serei escravizado por conceitos como “valores”, “princípios” ou outras construções culturais e educacionais, porque o único tirano que admito é a voz da minha própria consciência e porque estou plenamente convicto de que, estando em risco o sucessso do caminho da elevação, fica também em risco a existência do clube pelo qual dei tantas horas da minha vida, tanto dinheiro da minha carteira e tantas batidas do meu coração, defendo que se complemente a acção elevada –mas cada vez mais difícil - de alguns grupos de sócios, com a outra acção menos elevada: pintem-se paredes com dizeres, ergam-se tarjas com palavras de ordem e entoem-se cânticos pela mudança. Entupam-se as caixas de correio do clube com cartas de protesto, interrompam-se os pilantras da direcção nas AG com assobios e vaias e mandem-se pedradas nos carros de Rolandos Oliveiras, Pedros Afras e quejandos. Façam-se esperas nas garagens, encostem-se as pessoas à parede e arranquem-se as cadeiras coloridas do estádio. Invadam-se as instalações do EVA à força quando demorarem 6 meses a enviar o cartão de sócio, refilem contra os stewards que queiram impor as regras arbitrárias que vêm de cima e protestem contra a falta de sabonete nos WC. E os que não o quiserem fazer, que se certifiquem, olhando-se ao espelho, que é a cultura de elevação e não a falta de coragem que os (des)move.
Em suma, corra-se de uma vez por todas daqueles corredores com todos os que contribuíram ou continuam a contribuir, por acção ou omissão para o momento actual do clube; se não houver alternativa, que se instale a anarquia e o poder que caia na rua – porque esta rua não é uma rua qualquer, é uma rua onde há gente séria, honesta, competente e que tem como único interesse o engrandecimento do Sporting Clube de Portugal. É a rua do Leão de Verdade e da Associação de Adeptos Sportinguistas. À tempestade seguir-se-á a bonança, ao Caos seguir-se-á a ordem, é disto que se faz a verdadeira e fundamental mudança. É disto que é feito o mundo.
Saudações Caóticas
:twisted: