A irreverência

O jogo está empatado. O médio aconchega a bola com o pé direito e levanta a cabeça. Entre a muralha de jogadores adversários, consegue aperceber-se de um pequeno espaço entre dois jogadores. A bola, teleguiada, atravessa o tapete verde e isola o avançado. É golo. Minutos depois, a equipa adversária marca e, novamente, o jogo permanece num impasse. Desta vez o extremo, docilmente, desvia a bola do defesa lateral. O esférico parece gravitar à volta dos seus pés e entra na área, fintando um dos centrais. A multidão levanta-se da cadeira e a bola descreve um arco, entrando dentro da baliza. Faltam apenas poucos minutos para o jogo acabar. A vitória parece iminente. De súbito, um dos extremos da equipa adversária cruza a bola para dentro da área. O cruzamento não é tenso e a bola parece pingar. No entanto, dentro da área surge um felino. É o ponta de lança. Com uma pequena dança entre os centrais, baralha as marcações e coloca dentro da baliza uma bola perdida. Os defesas levam a mão à cabeça. A vitória escapa-se e o árbitro apita.

Sejam médios, extremos ou avançados, são os criativos que fazem os estádios encher. A própria palavra tem a sua génese no verbo criar. Porque são eles que criam os golos, em momentos de impasse onde mais ninguém teria capacidade para ver linhas de passe, driblar adversários ou marcar golos de ângulos reduzidos. São a esquerda do futebol, os inconformistas que protestam de forma veemente contra o status quo. Esta irreverência muitas vezes extravasa os relvados, inundando a vida pessoal de quem não acredita em jogar simples e fazer o esperado. É natural. Quando vemos um destes jogadores em campo podemos adivinhar como se comporta noutras situações. Tal como quando vemos uma obra de arte, podemos extrair informações acerca da vida do seu criador.

Claro que existem exemplos que contrariam o que disse atrás. Mas para cada um desses exemplos, existem muitos mais que confirmam a regra. Maradona não era conhecido por ser comedido. A cocaína fazia parte do seu quotidiano e estalava os pintons na cabeça dos adversários. Mesmo assim, levou a Argentina a um título mundial e um clube mediano de Itália a sagrar-se campeão por duas vezes. Romário, um dos maiores avançados da história do futebol, tinha (e tem) uma boca maior que o seu talento. Ronaldo faz birras, como um bebé insatisfeito, quando é substituído. Zidane acabou a carreira a cabecear um adversário, numa final do Campeonato do Mundo, devido a um simples insulto. Mas nenhuma destas situações nos leva a pôr em causa a qualidade futebolística destes afamados do desporto-rei.

Se a irreverência é um traço comum nos criativos, podendo ou não ser controlada pela capacidade de auto-gestão que cada jogador apresenta, qual é, então, a função do treinador? A função do treinador é integrar o talento individual num contexto colectivo. Para que este laborioso trabalho seja possível, são necessárias duas variáveis distintas: reforçar positivamente o jogador e enquadrá-lo num sistema táctico que privilegie as suas características. Com reforço positivo, refiro-me à necessidade de premiar o atleta quando consegue contribuir para o equilíbrio homeostático do colectivo, ou seja, quando as suas “armas” técnicas resolvem jogos sem perder a noção de grupo. Depois, quando falo de enquadramento táctico, estou a apontar a necessidade de criar um habitat específico para que o jogador possa potenciar o seu talento inato.

Perante o que foi exposto previamente, podemos concluir que no Sporting existe um caso claro de como não lidar com um criativo: Simon Vukcevic. Todos os treinadores que trabalharam com o montenegrino não só negligenciaram a importância do reforço positivo, excluindo-o do onze titular após prestações satisfatórias, como não têm tido o engenho de o colocar na posição que mais beneficia as suas características individuais. Vukcevic não é, de todo, um extremo. Falta-lhe velocidade, capacidade de progressão em drible e inteligência para soltar a bola no momento correcto. Colocá-lo numa ala é estagnar a transição ofensiva do Sporting. Perante este imbróglio posicional, penso que só existe uma resposta: Vukcevic é um avançado-centro. Tem todas as características técnico-morfológicas para actuar nesta posição: espontaneidade de remate, corpulência, capacidade de retenção da bola sob pressão e uma técnica considerável, que lhe permite criar espaços em situações de aperto. Tem apontamentos que fazem lembrar Wayne Rooney - numa escala qualitativa inferior, como é lógico. O uso sistemático do jogador colado a uma das alas não só prejudica o seu desenvolvimento como o próprio Sporting. Se jogasse na frente de ataque em vez de Hélder Postiga, esse justiceiro dos travessões, provavelmente não seria tão urgente a contratação de um “pinheiro” que garantisse vários golos por época.

Finalizo afirmando que é possível ser irreverente com reverência. Ou seja, é possível moldar a anarquia posicional de um criativo colocando-a ao serviço do colectivo. Porém, para que isto possa ocorrer, é necessária a presença de uma estrutura técnica que pense correctamente o futebol, potenciando os predicados de cada elemento constituinte do plantel. E isto, infelizmente, não tem ocorrido no Sporting destes últimos - e largos - anos.

@ Winston Smith 2011

Mais um excelente texto neste quadro. De um excelente forista. Para mim, com um gosto especial, porque se fala do futebol dentro das 4 linhas que é o que mais gosto de discutir.

E de um tema recorrente nas últimas semanas…

Esta irreverência, a capacidade para desequilibrar e o gosto pelo risco, são um dos atractivos do futebol, continuam a ser… num futebol cada vez com menos espaços, em que se trabalha os jogadores e as equipas para preenchimento desses espaços, em que os jogadores são trabalhados não só no seu talento com bola, mas sem bola… em que cada vez há menos extremos, menos 10… o risco que estes jogadores trazem ao jogo é minimizado ao máximo.

Eu acho que os Sportinguistas têm um gosto especial por este tipo de jogadores…nasceram muitos no nosso berço, por casualidade ou não, jogadores de ala, dribladores, rápidos, daqueles jogadores que levam pessoas aos estádios… por isso, tácticas de losango, meios campo preenchidos com jogadores de posse de bola e sem apetência pelo risco, são contra natura… vão contra o nosso ADN.

Quanto à irreverência… bem vinda ao meu Sporting porque se precisa de cor, numa equipa que tem sido sistemáticamente cinzenta… mas isso e mais nos dias de hoje, não desculpa nem é sinónimo de falta de profissionalismo e aplicação… nos treinos e jogos, nem desenquadramentos com o colectivo… é que esta irreverência, se não é dirigida para o bem comum, deixa de ser irreverência para ser outra coisa qualquer… quanto ao jogador em questão, além de um desaproveitamento das suas melhores qualidades, actualmente por um treinador que considero incapaz e que leva a tal minimização do risco ao máximo, por vezes vislumbro esse desenquadramento… e é por isso, mais que as suas utilizações a médio interior ( na altura do losango ) ou extremo, o levam a não potenciar ao máximo o seu talento, que é muito.

O futebol tem imensos exemplos deste tipo de jogadores, talentosos, irreverentes… no futebol moderno ou fazem aquilo que Cristiano Ronaldo faz, que é não tomar o seu talento como garantido e trabalhá-lo, mantendo uma postura profissional e direcionada para a equipa ( falo de CR, mas podia falar de Messi e muitos outros, obviamente ), ou nem o seu talento e os seus pequenos fogachos ( Ronaldinho, Robinho, Adriano, Cassano, etc… ) os salvam… o peso dos salários de jogadores de futebol num clube não se compadecem com pessoas que andam a brincar ao futebol.

muito bom :clap:

Excelente texto Winston :clap:

Muito bom texto!

Concordo especialmente com a parte a Bold. E só não constata isso quem é cego.

Muito Bom texto :clap:

Enorme texto Winston Smith, é verdade vai mesmo contra o nosso ADN não potenciar as nossas principais virtudes, culpa disto? Invariavelmente terá de ser atribuída aos treinadores como é obvio que não sabem potenciar o que de melhor temos sem dúvida alguma…

Neste texto frisas Vukcevic, mas eu até diria que há 1 outro jogador que é talvez o mais criativo desta equipa e que poderia muito bem ser o motor da mesma, fazer os passes a rasgar a defesa, a decidir os jogos com jogadas “mágicas”, sim falo de Matias Fernandéz, desde que chegou não tem sido aposta, não tem tido apoio e sobretudo não o deixam jogar onde mais gosta e rende.

Posto isto, ninguém pode ficar indiferente ao teu grande texto, é 1 triste realidade é certo e só há 1 forma de a mudar, tendo 1 treinador decente que tenha visão e saiba meter a matéria-prima onde ela mais rende…

SL :great:

Enorme texto.

Apesar de achar que o Vuk tem alguma culpa naquilo que lhe tem vindo a acontecer também é verdade que é dos poucos criativos, a par de Matias Fernandez e Jaime Val10 que temos no plantel.

Com os treinadores de pacotilha que temos tido na última década em Alvalade não admira que o nosso futebol esteja cada vez mais descaracterizado.

Já tenho saudades de ver um jogo em Alvalade com um futebol com jogadas bem delineadas, com princípio, meio e fim, de futebol não jogado aos repelões, o do pontapé pra frente e fé em Deus. Tenho saudades do futebol com extremos como De Francheschi ou Emanuel Amunike ou, mais atrás no tempo, Mário Mateus.

E fico feliz de ver que não sou o único.

@ Winston :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap:

Excelente texto Winston mas tenho de discordar de algumas coisas, nomeadamente:

Tem apontamentos que fazem lembrar Wayne Rooney

Eu diria que este tipo de exageros são o espelho de um SCP que há vários anos não vê jogadores de verdadeira classe no seu relvado. Estes exageros depois criam o 8 e o 80, sem meio termo. Alguns acreditam mesmo nisto e depois defendem os jogadores mesmo quando não há desculpas possíveis, o que por sua vez instiga quem é razoável a ter de argumentar como se detestasse o jogador, para contrapor.

Posto isto, Vuk (tal como Matias) é um jogador incompleto e que não serve para ser o cérebro criativo de um SCP que se quer estável e a lutar por um título, porque ele mesmo é instável na sua essência como jogador. A realidade é essa. E a outra realidade é que, até ver, Vuk não parece mostrar verdadeira vontade de mudar a sua forma de ser, porque efectivamente era preciso mudar, principalmente a sua mentalidade, para se tornar no jogador que ele tem potencial para ser. Mas por agora não adianta andarmos a fazer comparações de que este é tipo o Maradona, e de que aquele jogador lembra o Baresi, ou que aquele lance é mesmo à Rooney. Se assim fosse, se de facto isso tivesse razão de ser, então seria sinal de que o SCP tinha jogadores de qualidade, o que não se verifica.

Concordo que nos faltam criativos, mas Vuk não é o criativo que precisamos. É preciso um criativo tipo Matias, mas que tenha arcaboiço para estas andanças e presença em campo, sempre, jogo após jogo. Em suma: precisamos de um jogador de futebol a sério, dos caros e bons.

Antes de mais queria agradecer os elogios de todos! Infelizmente, por falta de tempo, não posso “pegar” em tudo o que foi dito. Mas concordo com a maior parte das ideias que foram acrescentando. :great:

Repara que a frase não acaba aí, eu acrescento: “numa escala qualitativa inferior”. Quando digo que um jogador faz lembrar outro, não estou a dizer que a qualidade é idêntica, mas antes que o estilo de jogo é semelhante. Eu também digo bastantes vezes que o Pedro Barbosa me fazia lembrar o Zidane. Ora, é lógico que o francês foi um jogador infinitamente superior ao português. Mas, em termos puramente estilísticos, são parecidos.

O Rooney é um avançado baixo mas corpulento, com uma técnica considerável, grande capacidade de remate e um fraco jogo aéreo. Neste sentido é semelhante ao Vuk, sendo o montenegrino obviamente inferior em termos de qualidade futebolística. No entanto, se os estilos são parecidos, porque é que um joga como avançado-centro móvel e o outro colado a uma linha? Porque um é treinado por Ferguson e outro por Paulo(s) Sérgio(s).

O caso ainda se torna mais absurdo quando jogávamos em losango. Andámos anos e anos há procura de um parceiro ideal para o Liedson, quando ele já estava no plantel. Nenhum futebolista evolui sem um treinador que saiba identificar e potenciar as suas qualidades. No caso do Vuk, tem sido tudo feito ao contrário. Não é situação rara, no entanto. Veja-se Varela e Moutinho. Ou o Evaldo que parece ter-se esquecido de como se joga futebol. No Sporting actual, qualquer bom jogador se torna medíocre.

O que neste jogo do Paços aconteceu foi exactamente o que tu escreveste no post inicial… Foi mas deu-nos a demissão de JEB!! ;D ;D

Bom texto! Sou admirador de Vuckcevic e, na minha opinião, muita da instabilidade psicológica que revela se deve ao facto de não jogar na posição que mais o favorece. Nota-se que é um jogador com sede de golos, com o pensamento na baliza.

Gostei do texto.

Mas ele deve procurar alguma forma de se motivar, porque senão nunca irá conquistar lugar no 11