O Zé Pinto sempre quis estudar Medicina. Gostava da parte da cirurgia, de ver o que está escondido dentro do corpo e depois endireitar a doença com o auxílio de ferramentas. O pai era mecânico e, no fundo, um cirurgião é uma espécie de mecânico do corpo: abre, vê e conserta, para a pessoa se levantar semanas depois e seguir o seu caminho com a peça substituída ou a maleita curada.
O Zé, a muito custo, entrou então na faculdade. Estudou muito no secundário, queimou muitas pestanas durante a noite e esteve sempre atento nas aulas. Teve média de 19. Chegava e sobrava. Mesmo sendo algo brigão e tendo um temperamento irascível (que lhe valeu algumas suspensões) nunca perdeu o sentido das ciências. E mesmo quando bateu no professor Jorge, do bigode farfalhudo, não foi expulso da escola. A razão até era compreensível: o professor não o gramava muito e, propositadamente, não o levou a uma visita de estudo ao Museu das Marionetas. O Zé foi reclamar, o professor chamou-lhe “filho de uma fina meretriz” e dois socos aterraram em cheio nas bochechas do bigodaças. Chão com ele, auxiliares a segurarem no Zé e duas semanas de suspensão. Ficou assim.
Na faculdade, a conduta do Zé já era diferente. Aplicado, compreensivo, dedicado aos doentes e colegas. A mãe, que o Zé adorava mais do que tudo, estava toda cheia de si. O Zé tinha-se recomposto e agora era um menino-senhor. Usava fato com suspensórios, falava delicadamente com os professores e estava a fazer um trabalho invejável no internato. Os doentes adoravam-no, ele detectava rapidamente as doenças simples que os médicos mais velhos lhe davam e, para além do mais, tinha sempre um sorriso colado na fronte e uma palavra de encorajamento. Era um verdadeiro prodígio.
Por isso, a palavra Zé mordia os muros da faculdade e da casa onde vivia com a mãe. Falavam sobre os seus valores morais, o temperamento benignamente assertivo, as vastas competências pessoais e, sobretudo, sobre a dedicação que tinha à mãe. Já com uma certa idade, ia tendo os chiliques próprios da velhice. O coração já estava gasto de tanto bater, o reumático zumbia nas vértebras e a memória mareava. Mas o Zé acudia a tudo. Com afecto, levava a mãe a todo o lado e atendia aos recados com a rapidez dum velocista. Em todas as conversas abordava o carinho incondicional com que tinha sido prendado enquanto crescia. E não havia traço de falsidade no discurso: as palavras surgiam com a honestidade duma madrugada.
O curso então findou. Entregaram-se os diplomas. Na sala, o Zé olhava em redor para ver os olhos da mãe que tinha vindo com o tio. Não a encontrava. Ficou preocupado. Sabia que este momento era mais para a mãe do que para ele. Tantas vezes tinha a senhora falado nele. Ao sair da sala, voltou a perscrutar o espaço. Nem sinal dela. A caminho do metro o telefone tocou: era o tio. A mãe estava gravemente doente e tinha sido internada justamente no hospital onde tinha recebido o diploma. O Zé voltou para trás e correu como nunca tinha corrido na vida.
Na cama do hospital, um tubo entrava pelas veias da mãe. Não sabiam ainda bem o que tinha provocado o desmaio. Talvez um enfarte. Ninguém tinha certezas e mesmo depois de vários exames continuavam sem saber. Nos dias seguintes, o estado da mãe estabilizou-se, mas não melhorava. Continuava a falar pouco, não tinha apetite e sentia-se cansada. Os psiquiatras diziam que estava deprimida, os cardiologistas que era do coração e os pneumologistas que era uma disfunção respiratória. Era um verdadeiro caso para o Dr. Gregory House.
Os dias foram passando com a mãe no hospital. Em tempo de vacas magras, as camas diminuíam e os doentes aumentavam. Não havia dinheiro para manter um doente muito tempo internado. O director do hospital estava preocupado com os gastos. Surgiu-lhe, então, a ideia de colocar o Zé a tratar da mãe em casa. O rapaz era um médico promissor, a família ficava muito contente dado o carinho e confiança que sentiam por ele e, sobretudo, vagava mais uma cama. Na verdade, o director pensou mais na cama e nos gastos com uma senhora moribunda do que nas outras coisas, mas ficava bem dizer o contrário. Acho que ele sempre soube que a ideia não era mais do que uma certidão de óbito dentro de um envelope perfumado.
Lá foi o Zé com a mãe para casa. Confiante que ia conseguir encontrar a cura e inconsciente da sua própria inexperiência como médico. Mas o tempo era implacável: a doença ganhava terreno à vida. O Zé já não sabia o que fazer. Não queria deixar de cuidar da mãe em casa, continuando a mentir a si próprio sobre as suas competências. Não se lembrava que as letras das palavras “médico promissor” juntavam-se no futuro e não no presente. O problema é que, naquela hora onde os olhos da mãe já só eram vidro, o futuro não tinha lugar. A urgência do presente abafava tudo o resto.
O Zé sentou-se à beira da cama. Agarrou na mão da mãe. Aproximou a boca do ouvido dela e disse: vais ver que vais ficar forte. Muito forte. Eu cuido de ti para sempre. Levantou-se então da cadeira e pôs as mãos nos suspensórios, esticando-os. Sorriu. Na cabeça nenhum pensamento entrava ou saía. Não conseguia pensar. Nem sentir. Fechou os olhos e voltou-se a sentar.
No fundo, o Zé só queria ficar naquela cadeira para sempre. Queria fugir de si próprio. Queria que fosse possível fechar os olhos e voltar ao dia onde aceitou um caso para o qual não estava preparado. Queria dizer que não à negligência do director. Subitamente, os olhos abriram-se. E quando viu a parede branca que flutuava à sua frente, apercebeu-se que toda ela era feita de angústia. Já não havia nada mais no quarto para além disso.
@Winston Smith 2012