Diz a sabedoria popular que o melhor dia para casar é 31 de Julho porque depois entra A-gosto. Mas Agosto entrou, a época futebolística começou e o futebol do Sporting continua a não dar gosto algum, de tal maneira que se adivinha um novo divórcio entre o clube e a massa adepta. As causas? Estão mais do que identificadas, discutidas e esclarecidas. Mas porque nunca é demais lembrá-las, passo a expô-las sob a forma de uma alegoria a que nenhum sportinguista deveria ficar indiferente.
Certo dia o meu avô decidiu enriquecer o seu espólio agro-pecuário mediante a aquisição de um borrego. Perguntarão desde já os mais jovens: “Ó Eddie, mas o teu avô também joga Farmville no Facebook?”. Não, comprou um borrego na vida real. Nesta era de jogos, simulações e realidades virtuais, convém lembrar que já houve um tempo em que cultivar hortaliças e criar animais fazia parte da vida real e não era apenas um extra do Facebook. Eu tive o privilégio de viver nesse tempo e nesse espaço e portanto pude acompanhar in loco o crescimento do borrego. Durante muito tempo o borreguito pareceu-nos um ovino normal: tinha lã, comia erva, cheirava a bedum e fazia mé, pelo que tudo levava a crer que dali a algum tempo se desenvolveria num maduro carneiro. Só quando ele começou a desenvolver os caracteres sexuais secundários típicos da sua espécie é que nos apercebemos da infeliz sorte do animal: fosse por defeito congénito ou fosse por bruxedo da vizinha, o chifre direito estava a crescer de tal forma torto que se aproximava do olho e ameaçava cegá-lo se continuasse a crescer. Inicialmente ainda tivemos esperança que o chifre alterasse espontaneamente o seu trajecto espiralado, mas quando este começou a roçar na borda do osso da cavidade ocular, decidimos que algo tinha que ser feito imediatamente. Provavelmente pensarão que num momento tão grave e sensível como este se tenham realizado solenes Assembleias Familiares Extraordinárias, Sessões de Esclarecimento e calorosos debates sobre os prós e contras de cada uma das possíveis soluções. Não terá sido exactamente assim, mas não foi por isso que a solução encontrada foi menos acertada. A minha memória não me permite reproduzir aqui todos os pormenores do solene momento da ponderada decisão, mas penso que foi num almoço, entre duas garfadas, que o meu avô disse para o meu pai:
“Ó Quim, prá semana hás-de trazer a rebarbadora pra ver se cortamos o chifre ao carneiro!”
Ao que o meu pai respondeu:
“Está bem. Chegue-me aí a pinga.”
E assim, com todo o saber e pragmatismo que advêm da idade, da experiência, e do hábito de resolver problemas, decidiu-se salvar a visão e a própria vida do animal fazendo a única coisa que objectivamente poderia ser feita: cortar o chifre ao carneiro com as ferramentas que havia à mão. E se rápido se decidiu, mais rápido se executou. No dia da operação, o meu avô segurou na cabeça do animal, eu segurei-lhe nas patas e o meu pai ligou a rebarbadora e aparou o chifre com tal eficácia que, 30 segundos depois só pairava no ar o cheiro a enxofre, as aparas de chifre e o susto do carneiro. Mal o largámos no pátio ele deu uma cabriola, estacou a alguns metros de distância e fixou-nos com o seu olho direito como que gozando da visão que quase perdera. E assim se salvou o carneiro; podia ter só chifre e meio, mas tinha os dois olhos inteiros e operacionais; podia estar parcialmente amputado do seu ornamento craniano mas estava mais vivaço do que nunca.
Creio que não é preciso ser-se um Sigmund Freud para desencriptar o paralelismo entre este episódio e a actual realidade do clube: o carneiro representa a massa associativa do Sporting Clube de Portugal, enquanto o chifre que lhe turva a visão e ameaça a sua vida representa a linha directiva que vigora no clube há década e meia.
O chifre irrompeu sob a forma de uma promessa: a de um Sporting moderno, pioneiro e inovador; de um Sporting que ganhasse 3 em cada 5 campeonatos e cuja sustentabilidade financeira dependesse de um projecto imobiliário e não da bola que bate na trave; de um Sporting com uma gestão profissional, séria e rigorosa. Sedentos de conquistas depois do período mais estéril de títulos da história do clube, os sportinguistas foram rapidamente e compreensivelmente embalados nesta promessa de uma nova era de glória, tanto mais que o Pai do projecto era José Roquette, que trazia na sua ligação familiar ao fundador do Clube a idoneidade e insuspeição que os sócios precisavam para dar carta branca ao processo de mudança. O chifre iniciava assim um crescimento inexorável, de rumo inicialmente imperceptível e cujos efeitos só se viriam a sentir muito mais tarde! Os sportinguistas compraram acções, alteraram estatutos e aquiesceram perante todas as decisões e propostas dos novos dirigentes. Foram obrigados a escolher entre o Basquetebol, o Hóquei e o Andebol como se não ter esta ou aquela modalidade fosse a única alternativa a ter esta ou aquela modalidade; foram obrigados a escolher entre ter um Pavilhão ou ter mais 10 mil lugares no novo Estádio, como se a única alternativa a ter mais 10 mil lugares no Estádio fosse a não construção de um Pavilhão. E assim os sportinguistas foram deliberando e confirmando, provavelmente sem compreenderem o que significava o repentino desaparecimento de um Pavilhão para as modalidades ou de uma pista tartan para o atletismo, num clube que construiu boa parte da sua grandeza no multi-desportivismo e no convívio e proximidade dos sócios aos atletas e dirigentes e às instalações do clube; e muitas vezes sem se aperceberem das mentiras e incoerências dos demagogos que se colocaram à frente do clube, ou das mostras de incompetência que estes iam dando. Eram os primeiros sinais da cegueira causada por um chifre que toldava a visão ao carneiro ao mesmo tempo que crescia imparavelmente, preocupado apenas com o seu trajecto em espiral e indiferente à saúde do corpo que o alimentava. Mais preocupados com os seus próprios interesses, com interesses obscuros alheios ao clube, mais preocupados com a aparência do que com a essência, ou por mera falta de sensibilidade e competência, os novos dirigentes cavaram fossos e ergueram barreiras entre eles e os sportinguistas para se fecharem no imperscrutável mundo da engenharia financeira a que os leigos nunca poderiam aceder, e que segundo eles era a única forma e via para engrandecer o clube, ou mesmo salvá-lo. E assim ficou o Sporting Clube de Portugal nas mãos de uma tecnocracia cuja maior competência que revelou foi a de conseguir chegar e manter-se no poder através da propalação de mentiras e demagogias, através de falsas ilusões, através de tácticas divisionistas destinadas a diminuir o poder dos verdadeiros donos do clube - os sócios - e através de nomeações e indigitações estratégicas nos principais cargos do clube para que o poder nunca saísse de um círculo de pessoas e interesses e para que a gestão danosa dos antecessores fosse perpetuamente encoberta pelos sucessores. Assim foi o chifre crescendo e bloqueando a visão do carneiro. Desta forma consolidada no poder, a geração de tecnocratas pôde assim agir de forma livre, sem oposição, de forma despótica e à rebelia dos sócios sempre que os estatutos do clube não a constrangia; quando os sócios se opunham, eram manipulados e chantageados com a ameaça de falência ou da falta de dinheiro para investir no futebol; quando os estatutos eram um obstáculo, alteravam-se ou tentavam-se alterar esses mesmos estatutos.
E foi assim que os tecnocratas lograram mudar o paradigma da gestão de uma associação desportiva. O clube passou a um aglomerado de empresas; os sócios e adeptos passaram a ser clientes; a paixão foi esmagada pela razão. Uma década e meia depois, qual foi o impacto do chifre no estado de saúde do carneiro? O que é hoje o Sporting Clube de Portugal? Um clube que compete sistematicamente a um nível inferior ao dos seus rivais históricos; um clube que atravessa o 2º maior jejum de campeonatos na sua história; um clube em que há cada vez maior afastamento dos sócios e adeptos; um clube com o maior passivo financeiro da sua história, e tão grande que nem é assumido pelos responsáveis; um clube que foi esvaziado de quase todo o seu património imobiliário; um clube em que aqueles que se atravessem a contestar, recebem ameaças de porrada do presidente do Conselho Directivo ou recebem comentários às suas mães por parte do presidente da Mesa da Assembleia-Geral; um clube que está numa posição de refém perante os seus credores. Em suma, um clube em risco de fechar as portas ou em risco de cessar a sua existência tal como a concebemos hoje. Tal como um chifre retorcido que obstrói a vista e ameaça a vida do carneiro, a classe de dirigentes que se alapou ao clube iludiu os sportinguistas e deixou o clube à beira da extinção. E se o clube ainda vai a tempo de ser salvo, tem que começar por se ver livre de quem o deixou no estado em que está. Se ainda se pode salvar o carneiro, tem que se lhe cortar o chifre.
Mas antes que se ponham com ideias de ir a correr a uma loja de ferragens ou de ir ao site da Black & Decker para comprar uma rebarbadora, convém lembrar uma vez mais o carácter metafórico deste meu texto. Não é com rebarbadoras ou outras ferramentas que se vai cortar este chifre e salvar este carneiro, nem é este texto uma apologia da violência. Usem-se ferramentas sim, mas as ferramentas estatutárias; as que permitam a demissão, renovação e reestruturação dos orgãos sociais sem que sobre elas possa pairar qualquer sombra de ilegitimidade. Porque só assim se pode reedificar o carácter grande, sério e nobre que se perdeu e que se quer de volta; e porque o Sporting Clube de Portugal é um clube de leões e não de carneiros zarolhos.