"Tinham-lhe falado de um rapazinho jeitoso, da Sanjoanense. As informações eram boas, e Aurélio Pereira foi vê-lo. Maravilhado, não perdeu tempo. Ainda o tal rapaz estava... no chuveiro, já o olheiro leonino lhe aparecia à frente a convidá-lo para o clube de Alvalade. Para chegar primeiro, para se antecipar à concorrência. O rapaz era Litos, um dos vários talentos que Aurélio Pereira achou, antes e depois de um departamento que fez 20 anos sexta-feira passada.
De outros jovens, porém, nem informações tinha. Tinha era intuição. Como quando reparou no miúdo de oito anos que usava uma cédula alheia para participar num torneio de maiores de dez, num torneio organizado pelo próprio clube leonino. Esse miúdo chamava-se Futre. Ou quando achou Cadete por ter visto, num café de Benavente, um cartaz que anunciava o jogo da equipa da terra contra a Académica de Santarém, em iniciados.
Aos 14 anos, tinha ido ele próprio, mais quatro amigos, às captações do Sporting - numa fila que ia da porta 10-A até à 15-A -, mas o seccionista fez a escolha pelo tamanho. Ficavam os grandes, os pequenos, mesmo habilidosos, iam para casa. Foi aí que Aurélio Pereira, por acaso o único escolhido, ganhou o gosto pela detecção de talentos. E também foi aí que definiu uma regra, um critério: todos seriam vistos a jogar. Altos ou baixos. Magros ou gordos, que estes, se for preciso, emagrecem.
Há 20 anos, porém, ainda ficou a pensar um dia inteiro, na tipografia onde trabalhava, a pensar se aceitava o desafio de descobrir novos talentos para o "seu" Sporting. Aceitou. Só tinha uma sala e um ajudante, mas também... imaginação. Lembrou-se de fazer uma carta ao todos os sócios, pedindo-lhes informações sobre potenciais craques das suas zonas. Nem uma semana depois, milhares de respostas. Foi assim que soube de Nuno Assis.
Hoje, o Sporting é um viveiro de renome. Cá dentro e lá fora. E se é certo que as condições são agora de topo, a explicação não é (só) a Academia. É, antes de mais, a perspicácia do homem que nem duvidou, quando lhe interromperam um almoço de família, na Pampilhosa da Serra, para falar de Rui Patrício, ou que ficou atento a Luís Boa Morte mesmo depois de este ter sido dispensado por ser franzino. Afinal, para Aurélio Pereira o talento não se julga pelo tamanho. "
"PEIXE
"Veio cá treinar, era do Nazarenos. Agressivo, determinado, inteligente. Um jogador completo."
PAULO TORRES
"Veio do Sport Lisboa e Évora. Era médio-ala e troquei-o com o Paulo Pilar. Era um rapaz fortíssimo."
FIGO
"Chegou do Pastilhas, como toda a gente sabe. Franzino, mas com uma capacidade técnica fantástica."
BOA MORTE
"Era do Arrentela. Esteve cá nos infantis, saiu, por ser pequeno. Cresceu e voltou. Acreditou sempre."
CANEIRA
"Foi o pai que o trouxe. Assumiu-se imediatamente, mostrou logo uma grande capacidade de entrega."
NUNO ASSIS
"Descobrimo-lo no Lousanense, já ele era júnior. Impressionou pela resistência, pelo colar do jogo."
DANI
"Era um jogador extraordinário. Vi-o na praia, em Tróia, tinha ele sete anos. Podia ter sido fantástico."
BETO
"Fomos buscá-lo ao Cultural da Pontinha. Era ponta-de-lança, espigadote. Deu um belo central."
SIMÃO
"Jogava no Diogo Cão. Falaram-me dele e mandei vê-lo. Disseram-me logo que era terrível, veloz."
NUNO VALENTE
"Veio do Olivais Sul, mas saiu, por ser magro. Foi para o Vitória da Picheleira, cresceu e voltou para cá."
QUARESMA
"Pedi a um olheiro para ir ver o irmão dele, ao Domingos Sávio, e ele reparou no Ricardo, o 'Ratazana'."
CARLOS MARTINS
"Era do Tourizense, um sócio indicou-o. Veio nos infantis, ainda voltou a casa, mas recuperámo-lo. Tem potencial."
HUGO VIANA
"Jogava no Gil Vicente. E, na selecção de Braga, fazia dupla, no meio-campo, com o Custódio."
RONALDO
"Veio do Nacional. Impressionou-me a personalidade. Os que vinham das ilhas queriam logo ir embora. Ele não."
JOÃO MOUTINHO
"Fui treinador do pai dele. Jogava no Portimonense. Era pequeno, mas já impunha o seu futebol."
MIGUEL VELOSO
"Estava num jogo do Fofó, contra o Pontinha, quando vi um miúdo forte, mas de intuição fantástica."
YANNICK DJALÓ
"Houve a indicação, estava ele no Estação, da Covilhã. Veio cá treinar, deu três piques e convenceu, claro."
PEREIRINHA
"Era do Belenenses. Andávamos de olho nele desde os oito anos. Conversei com o pai e lá consegui trazê-lo."
RUI PATRÍCIO
"Era avançado, do Marrazes, e um colaborador foi ver o primeiro jogo dele a guarda-redes. Ligou-me logo."
ADRIEN SILVA
"Os pais vieram de França e ele jogava no Paçô, junto a Valdevez. Foi sugerido e provou ser um talento." "
"Boa Morte, que o Arsenal levou por 500 mil contos, é história para contar. Quando o agora jogador do West Ham foi dispensado, por ser franzino, Aurélio Pereira não lhe perdeu o rasto e até pediu a um amigo para o ir ver de vez em quando. Sabia, por instinto, que estava ali um diamante. Recuperou-o já o Benfica lhe tinha oferecido um contrato. O pai de Boa Morte rejeitou-o, e só pediu a Aurélio Pereira para arranjar os 70 contos por mês que o esquerdino, persistente, estava a ganhar, aos 16 anos, como... electricista. "
"Quando o Departamento de Recrutamento e Formação foi criado, em 11 de Julho de 1988, ainda havia treinos de captação. Hoje, já não há, graças à dimensão da rede de informadores e observadores, agora previsivelmente mais alargada pelo último projecto do clube de Alvalade, o já divulgado "franchising" de academias. De resto, o departamento liderado por Aurélio Pereira também descobre (ou prepara) novos... olheiros: Paulo Cardoso, que é actualmente o responsável pela prospecção do futebol profissional dos leões, passou por lá. E até um dos seguranças da Academia foi jogador do superolheiro. "
"Os nomes falam por si. Figo, Caneira, Simão, Quaresma, Ronaldo, Nani, Moutinho, Veloso… Em 20 anos, o departamento criado por Aurélio Pereira deu ao Sporting novos talentos, deu milhões de euros em transferências, deu fama e... proveito. Afinal, ser o clube que formou dois jogadores que, na mesma década, são considerados os melhores do Mundo, como Figo e Ronaldo só pode motivar orgulho.
Afinal, a que se deve o facto de ser o Sporting o clube nacional que mais e melhor aproveita a formação?
O Sporting, também por nunca ter tido apoios como outros, sempre teve veia formadora e uma cultura de ensinar os seus princípios. E teve de delinear uma estratégia, chegar e detectar mais cedo.
É esse, então, o segredo para aparecerem tantos jovens talentos? É chegar antes?
Provavelmente. Entre outros, como a estabilidade, a organização, a dedicação. Temos gente sempre disponível, em todas as áreas. Os jovens e as suas famílias sabem com o que podem contar.
Como funciona, hoje, o departamento que criou e lidera há precisamente 20 anos?
Igual, mas com bastante mais recursos. Em 1988, só tinha um colaborador. Comecei por dar um nome ao que estava a criar e enviei uma carta aos sócios. Foi a base do que há hoje, uma rede a nível nacional, com informadores e observadores, e um departamento que acompanha os jovens em tudo.
O que se alterou desde que foi criada a Academia?
Só as condições de trabalho, porque o resto, desde as estruturas de apoio à competência técnica, manteve-se. A Academia, que é uma bênção de Deus, surge porque a Administração concluiu que se o Sporting fazia jogadores sem condições, então se as tivesse seria ainda melhor, mais produtivo. Quando era treinador, cheguei a ter 50 jogadores sozinho, em meio campo.
E para continuar a ser uma escola de referência o que tem o Sporting de fazer?
Tem de manter a qualidade do trabalho, ter o mesmo rigor na escolha, a mesma estabilidade. A Administração está a trabalhar bem, o importante é não cair em rotina, estar atento.
Quando um dia se retirar não acaba tudo, o trabalho destes mais de 20 anos?
Nem pensar. Tenho uma equipa de jovens dedicados e competentes, capazes de seguir o trabalho que tem vindo a ser feito desde há 20 anos. "
"Aurélio Pereira estava numa empresa de artes gráficas, a Novotipo (que só deixou há seis anos), e, apesar de ter sido jogador - no Sporting, até aos juniores, no Futebol Benfica e, por fim, no Operário -, não era obcecado por trabalhar em futebol. O início até foi por acaso e deveu-se a um inglês, Ronnie Allen, antigo treinador leonino na década de 1970. Allen promoveu o júnior Carlos Pereira, irmão de Aurélio Pereira e hoje um dos adjuntos de Paulo Bento, deixando-o sem tempo para treinar os juvenis do "Fofó", cargo para o qual havia sido convidado. E Carlos Pereira sugeriu o irmão. Que levou o clube ao nacional e até a 18 vitórias em... 18 jogos. Depois, por iniciativa de Hilário, seguiu para as camadas jovens dos leões, onde ficou cerca de 20 anos como treinador. Até 1988. Antes disso, porém, já descobrira vários talentos. "
"Dividindo os jogadores entre talentos completos, incompletos e... bons jogadores, Aurélio Pereira considera que é essencial "ter paixão pelo jogo e pela profissão". E lembra-se de um jovem que tinha "uma enorme paixão pelo jogo e não pelo profissão": Dani. "Esse é uma frustração", admite, até, o responsável pelo departamento de recrutamento do Sporting. Nem todos os que prometiam cumpriram. Como Litos, que "aos 14 anos já jogava no campo todo". Ou José Lima, actual treinador dos juniores - que "o Rexach viu e quis levar para o Barcelona". Já Futre, o primeiro talento a ser descoberto por Aurélio Pereira, apareceu noutro... tempo. "Se fosse hoje, não teria preço. Era um fenómeno", descreve, recordando que o viu pela primeira vez tinha ele oito anos, a jogar pelos... Estabelecimentos Cancela, do Montijo. "
"Nações
É evidente a proliferação de estrangeiros nas equipas jovens dos grandes. O Sporting, explica Aurélio Pereira, não pode ignorar o mercado, mas só contrata lá fora se por cá não houver melhor. "As leis estão a levar a que isso aconteça. Temos de acompanhar o mercado, mas só vamos buscar jovens ao estrangeiro se forem melhores do que aqueles que temos cá", indica, alertando para os riscos que se correm: "O que está a acontecer é perigoso, sobretudo para a Selecção."
Extremos
A ideia é recorrente e Aurélio Pereira não a contraria, só a justifica; por que é que o Sporting lança mais extremos ou criativos? "São aqueles em que é mais fácil apostar. Jogam em zonas de menor risco, onde podem jogar à vontade, mas temos bons valores noutros lugares", afirma. E, para continuar a ser rei da... formação, o clube de Alvalade também precisa de um técnico corajoso, de ideias fortes, nos seniores: "Como o Paulo Bento tem sido."
Sistema(s)
Fiéis ao losango de Paulo Bento ou aprendizes de outros sistemas? "Em princípio, jogamos em 4x3x3", desvenda Aurélio Pereira, garantindo, porém, que essa opção não colide com o tal losango da equipa sénior. "Não, não há problema. Usamos mais o 4x3x3 por ser o que se interioriza e assimila mais facilmente, mas preparamos os jogadores para qualquer sistema. É importante é que eles saibam estar e saibam o que fazer em campo", avalia.
Liberdade
Vive-se na era da tecnologia, condiciona-se o talento. É esta a perspectiva de Aurélio Pereira, sem rejeitar o auxílio das invenções, mas criticando, por exemplo, "o desaparecimento do futebol de rua", onde os jovens, de tantas imperfeições tinha o terreno, "ganhavam uma técnica incrível". Depois, a falta de liberdade. "Vou ver um jogo de miúdos de oito anos, e o que mais ouço é pressiona, marca, não deixa jogar. Só não ouço é ninguém dizer joguem, divirtam-se", lamenta. "
Em : O Jogo
Este homem merece tudo e mais alguma coisa, sem duvida que o SCP deve muito a Aurélio Pereira!
